quinta-feira, 21 de outubro de 2010

As lembranças que provocamos

Um colega de ministério deixou o seguinte recado em uma das redes sociais virtuais das quais participo: “Olá mano, qual tem sido a corrida atual? Hoje me lembrei de algumas pessoas com as quais fiz algum percurso na corrida pelo Reino. Lembrei-me de você em uma jornada de Educação. Felicidades.” 

Essas simples palavras produziram uma agradável sensação em meu coração. Mesmo tendo sido nosso último encontro há bem mais de dez anos, lembrei-me de repente de sua imagem, do seu jeito de rir e de falar, de sua seriedade e alegria ao compartilhar sua caminhada desafiadora de vida.
Somos assim: locomovemo-nos de um lugar para outro, nos envolvemos em atividades aqui, ali e acolá e vamos escrevendo uma história que não fica registrada em papel ou arquivos de computador, mas no coração de pessoas afetadas por nossa presença, por nossas atitudes, palavras ou ações.
Lembrei-me de Jesus que não deixou nenhuma palavra escrita. A única grafia dele a que se faz referência foi feita no chão, enquanto pensava, suponho, no que responderia a religiosos que, querendo embaraçar-lhe, confrontavam a prática de uma mulher adúltera com o rigor da lei de Moisés.
O vento levou sua escrita, mas seu ato misericordioso entrou pra história porque, antes de tudo, impressionou positivamente seus discípulos.
É claro que Jesus também deixou marcas desagradáveis. Aqueles cujas vidas foram por ele confrontadas, por não apresentarem conduta compatível com os valores mais sublimes do Reino de Deus, optando por continuar no desvio, certamente não guardaram boas lembranças. Tanto é que alguns não sossegaram enquanto não o mataram.
Lembrei-me também dos cristãos de Tessalônica que impressionaram Paulo pelas obras de fé, pelo trabalho de amor e pela firmeza de esperança. Por isso, ele lembrava-se deles com gratidão e orava sempre por suas vidas. (I Tes. 1.2-3)

Dentre os benefícios das redes sociais e das assembléias anuais das convenções batistas, por exemplo, está o de possibilitar o reencontro com pessoas que, em algum ponto, no tempo e no espaço, gravaram algo em nossa história. Algumas delas nem sabem que marcaram nossa vida, positiva ou negativamente, pois a influência dos atos alheios sobre nós não se dá somente no tête-à-tête. Uma palavra dita em público ou um texto publicado nos impressiona gerando alegria ou tristeza, prazer ou dor.
O fato é que, cada vez que paramos para refletir sobre nossa história com determinada pessoa, emoções mistas afloram. Mesmo que a pessoa também tenha feito coisas boas por e para nós, geralmente a lembrança que vem à tona naturalmente é a do sentimento que mais fortemente ficou gravado. Os pensamentos que ela compartilhou conosco, por mais brilhantes que sejam, podem cair no esquecimento diante de uma forte emoção negativa vivenciada com ela.
Todos nós marcamos e somos marcados. Todos nós geramos alegrias e tristezas na lembrança de alguém. Mesmo que nos esforcemos, jamais conseguiremos que todas as marcas por nós produzidas nos outros sejam agradáveis. Quem fala em público ou escreve, por exemplo, não é capaz de mensurar que tipo de sentimento produzirá em cada ouvinte/leitor.
Mas podemos escolher viver de tal maneira que gerar marcas desagradáveis não seja nosso objetivo de vida. Se ocorrerem, que seja como efeito colateral inevitável, fruto de decisão consciente entre alternativas.
Que tipo de marcas estamos deixando nas pessoas que fazem parte do nosso raio de influência? Que tipo de lembranças deixaremos gravadas nelas?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Lidando com a aflição


“Pois tenho pra mim que as aflições deste presente tempo não se podem comparar com a glória que em nós há de ser revelada” (Rom.8.18)
Todo ser humano já experimentou aflição. É como se o coração não coubesse no peito e, por isso, palpita agitado batendo contra os ossos querendo explodir. É como se algo crescesse dentro de nós exigindo uma resposta que não está disponível. É como se o sangue necessitasse sair pelos poros em busca de alívio, trazendo para fora uma dor que não é sentida na pele, mas é profundamente real.
Uma idéia fixa domina o pensamento sugando as energias. Ela é ingerida na hora das refeições, mas não é digerida pelo estômago. É levada à cama na hora do descanso, mas o travesseiro parece agitado. E testada em caminhadas que visam cansá-la, mas a cada passo dado se revigora dominando o corpo. Ela se torna o centro da existência, deixando-nos sem saber se somos mortos-vivos ou vivos-mortos.
Desiludido, o portador da aflição insiste em encontrar uma saída, uma válvula de escape, mas, tudo que vê diante de si é um beco sem saída. Seus sentimentos, de tão machucados, transformam até mesmo uma possível luz do fim do túnel numa locomotiva em sentido contrário.
"A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem comigo. Indo um pouco mais adiante, prostrou-se com o rosto em terra e orou: "Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres". (Jesus, em Mt. 26.38)
O estado da alma é de vigília. A tristeza predomina. A solidão nos atormenta, mas nos afastamos da presença alheia. A cabeça se inclina. O chão nos atrai, mesmo sem ser o destino preferido. A vontade própria desaparece.
Depois, voltou aos seus discípulos e os encontrou dormindo”. (Mt. 26.40)
Quando nem mesmo os amigos são capazes de manter a solidariedade por não sentirem a dor que sentimos, nem entenderem a causa do nosso tormento, resta-nos o criador, o doador da vida, esperança de solução.
“O Senhor é refúgio para os oprimidos, uma torre segura na hora da adversidade. É o nosso refúgio e a nossa fortaleza, auxílio sempre presente na adversidade.” (Salmos 9.9; 46.1)
Na aflição colocamos o rosto em terra, mas os pensamentos são dirigidos ao altíssimo. Em oração, a força de vontade se desfalece, mas não desaparece, apenas é transferida àquele que é soberano.
“Faça-se a tua vontade” (Mt. 26.39)
Colocando a angústia diante do Senhor, recuperamos a esperança, a confiança e as energias, essenciais para enxergarmos saídas que nos libertem do sentimento de opressão que domina nosso ser.
“Na oração encontro calma, na oração encontro paz.
Orar a Deus faz bem à alma, falar com Deus me satisfaz.
Falar com Deus que privilégio, abrir a alma ao Criador.
Sentir que os céus estão abertos e ouvir a voz do Salvador.
Falar com Deus é o que preciso, pois Ele é fonte de poder.
Só nEle a vida faz sentido, pois me dá forças pra viver.
Grande é o nosso Deus e as obras que Ele faz.
“O seu amor não tem limites, em seu perdão encontro paz.”
(Lineu Soares e Valdecir Lima)

"Eu lhes disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo". (Jesus, em João 16.33)

domingo, 17 de outubro de 2010

Bem-aventurados



"Bem-aventurados vocês, os pobres, pois a vocês pertence o Reino de Deus
Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados
Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos
Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia
Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus
Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus.
Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês." (Jesus)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O pecado da difamação



Você já foi vítima de difamação?  Se sim, sabe o quanto é danoso perder a boa fama, o crédito, a reputação, por ser desacreditado ou ter a honra manchada.

Nesses dias de eleições, difamação tem sido uma das palavras mais praticadas. Como nas disputas eleitorais geralmente os fins justificam os meios, é tido como normal destruir a honra de alguém para vencê-lo nas urnas. É tão normal que, na era da internet, cuja origem das mensagens enviadas é possível de ser identificada, mas o processo é relativamente trabalhoso, até mesmo pessoas que se declaram comprometidas com Jesus entram na dança do repasse irresponsável de todo tipo de mensagem que “desconstroi” a imagem dos adversários e ajuda na eleição do candidato preferido.

Em nome da fé, usando o artifício da difamação, líderes religiosos passaram a orientar suas igrejas a não votarem nesse ou naquele partido, demonizando gente de histórico limpo de partido contrário e divinizando gente com histórico sujo de partido de sua preferência.

A difamação é tão antiga quanto à história do povo de Israel. Por isso, no início da institucionalização desse povo, recomendações aparecem nos textos sagrados, como por exemplo:

“Não andarás como mexeriqueiro entre o teu povo” (Lev. 19.16)

“Não levantarás falso boato e não pactuarás com o ímpio, para seres testemunha injusta” (Exodo 23.1)

“Senhor, quem entrará no teu santuário para te adorar?  ... Aquele que não difama com a sua língua...” (Salmos 15.3)

Da difamação, nem Neemias, grande administrador e líder político, nem Jesus, nosso Senhor, escaparam. Semaias foi subornado por Sambalate, Tobias e Gesem, mas Neemias entende a ação e declara:

Para isto o subornaram, para me atemorizar, e para que assim fizesse, e pecasse, para que tivessem alguma causa para me infamarem, e assim me vituperarem. (Neemias 6.13)

Já os fariseus, diante de uma ação milagrosa de Jesus em favor de um endemoninhado, cego e mudo, diziam: “Este não expulsa os demônios senão por Belzebu, príncipe dos demônios”. (Mt. 12.24)

Graças a Deus que nem só de maus exemplos a história bíblica é feita. José, de Maria, é um exemplo positivo. Diante da gravidez da futura esposa, sem que tivessem mantido relações sexuais, ele poderia fazer uso da lei, causando danos a ela. Porém, o texto sagrado nos informa:

“Então José, seu marido, como era justo, e a não queria infamar, intentou deixá-la secretamente.” (Mt. 1.19)

Não difamar, portanto, também é uma questão de justiça e justiça é um valor precioso do Reino de Deus. Se não abandonamos esta iniqüidade por amor e respeito à palavra de Deus, não só receberemos a justa recompensa divina, mas também corremos o risco de sermos condenados pelo sistema judiciário brasileiro por difamação.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O aborto, a Bíblia e as eleições 2010

"Segundo uma pesquisa oficial, 15% das brasileiras com idade entre 18 e 39 anos – ou seja, 5,3 milhões de mulheres – abortaram pelo menos uma vez. Elas pertencem a todos os meios sociais. Mais de uma em cada duas delas teve de ser hospitalizada na sequência. O aborto mal feito e suas sequelas são uma importante causa de mortalidade no   Brasil... É uma pena que esse grave problema social, em vez de incentivar um  verdadeiro debate, esteja sendo usado como máquina de guerra eleitoral." Jornal Le Monde 

.......

As razões que têm levado as pessoas a discutirem o tema aborto nas eleições 2010 no Brasil não são as mesmas. Estudar os motivos de cada uma daria um texto interessante, mas tratarei do assunto visando clarear alguns aspectos relevantes, a fim de ajudar àqueles que estão, de fato, interessados em compatibilizar suas crenças e práticas com razões que não sejam de disputas eleitoreiras.

O que gera polêmica na sociedade é o aborto que acontece como resultado da ação proposital, voluntária, do ser humano e não o que se dá “naturalmente” como resultado da ignorância ou falta de recursos, embora esse segundo tipo também devesse ser objeto de preocupação e reflexão, pelas razões sócio-econômico-educacionais que o envolve.

Como me empenho para ser cristão e sigo a tradição batista, gostaria de ponderar, inicialmente, sobre o que encontramos nos textos bíblicos, uma vez que tais textos são aceitos como critério básico na construção dos nossos pensamentos.
 O que encontramos na Bíblia sobre o aborto?
 Curiosamente a Bíblia não trata do aborto em termos de ação proposital do ser humano. Admitir que o assunto não é tratado na Bíblia, nos termos em que está sendo discutido hoje no Brasil (e no mundo) é uma questão de honestidade.
 Na Bíblia encontramos os seguintes textos:
 I
 "Se homens brigarem e ferirem uma mulher grávida, e ela der à luz prematuramente não havendo, porém, nenhum dano sério, o ofensor pagará a indenização que o marido daquela mulher exigir, conforme a determinação dos juízes. Mas, se houver danos graves, a pena será vida por vida...” (Êxodo 21.22-23)

Esse texto não se trata de análise do assunto aborto, muito menos nos termos que hoje discutimos. Trata-se de legislação que visava evitar violência e definia qual seria a indenização a ser paga por aqueles que, numa briga, ferissem uma mulher causando aborto.
 II
 Em sua terra nenhuma grávida perderá o filho, nem haverá mulher estéril. Farei completar-se o tempo de duração da vida de vocês.” (Êxodo 23.26)
 A versão revisada de Almeida diz “Na tua terra não haverá mulher que aborte”.

Essa tradução de Almeida tem levado alguns pregadores mal intencionados ou hermeneuticamente despreparados a aplicarem o texto como se fosse imperativo. Entretanto, a leitura do cotexto nos conduz a seguinte compreensão:

Exodo 23.20 = Há uma promessa da presença de um anjo para conduzir o povo de Deus;
 Êxodo 23.21 = Há uma orientação para que este anjo seja ouvido e obedecido, a fim que ele não puna o povo;
 Êxodo 23.22 = Há um esclarecimento das conseqüências da obediência ao anjo;
 Êxodo 23.23 = Há uma promessa de que o anjo conduziria o povo ao destino;
 Êxodo 23.24 = Há uma orientação de como o povo deveria lidar com os símbolos religiosos dos povos das terras para onde ia;
 Êxodo 23.25 = Há uma orientação para que o povo prestasse culto ao Senhor e como conseqüência seria abençoado com: 1) alimento e água; 2) cura das doenças; 3) ausência de aborto natural; 4) ausência de esterilidade.

Está claro, portanto, que não se trata de orientação quanto ao tipo de aborto discutido hoje no Brasil e sim de bênção para um povo que adora ao Senhor.

III
 o nosso gado dará suas crias; não haverá praga alguma nem aborto. Não haverá gritos de aflição em nossas ruas.” (Salmos 144.14)
 O Salmo 144.14 segue o mesmo espírito de promessa do texto de Levíticos. Basta lê-lo a partir do verso 12 até o 15.

Portanto, não há nada na Bíblia que fale do aborto nos termos em que o assunto está sendo discutido em nosso país.

 Sendo isso verdade, resta a cristãos honestos, admitirem que a formulação do pensamento em torno do assunto deve ser através de diálogo e reflexão visando compatibilizar o desejo de fazer a vida prevalecer, diante de realidades diversas com as quais todos estamos sujeitos a nos encontrar.
 Definir uma posição e demonizar de maneira genérica os que pensam diferente, especialmente em contexto de disputa eleitoral no qual interesses múltiplos estão em jogo, não me parece posicionamento adequado.

A questão da vida
 Lembro-me de quando, na adolescência, um colega tentava convencer os pares de que masturbação seria pecado pelo fato de milhares de espermatozóides serem mortos. Se espermatozóide é vida, ele tinha lá suas lógicas, absurdas, claro! Nenhum adolescente, entretanto, deixa de masturbar-se em nome da preservação de espermatozóides.

É interessante lembrar como os cientistas têm uma forte expectativa de encontrar sinais de vida em outros planetas. A ausência destes sinais faz com que a possibilidade de existência de uma simples bactéria ganhe valor incalculável.

Em nosso planeta, entretanto, no qual é imensa a variedade e complexidade de presença de vida, o valor que damos aos seres vivos não é o mesmo. O valor que damos a vida não está ligado a qualquer tipo de vida, mas ao tipo de relacionamento que com ela mantemos.
 Defendemos a vida, mas matamos por diversos motivos como, por exemplo, esporte, medo ou legítima defesa.

Você já ouviu alguma mulher, diante da vida de uma barata, lembrar-se do 6º mandamento: “Não matarás” (Ex. 20.13)? O mandamento é genérico. Não há, entretanto, uma pessoa que aplique esse texto ao pé da letra para todo o tipo de vida. Ele é usado somente em relação à vida humana. As exceções são abertas por nós, individual e coletivamente, com base em leis ou numa construção cultural baseada em fatores vários de interesse individual e sócio-econômico, que define que tipo vida e em que condições pode ser morta e quais devem ser rejeitados.

Aceitamos a morte espontânea – sem interferência humana – mas, contraditoriamente, temos dificuldades para autorizar a retirada de equipamentos médico-hospitalares usados para prolongar a vida de um ente querido. O sentimento de esperança, nesse caso, é aceito como justificativa para prolongar a vida, da mesma forma que a sensibilidade diante da dor do outro, pode levar-nos a desejar que os equipamentos sejam desligados a fim de que a dor cesse.

Os motivos, portanto, que definem nossa relação com a vida e com a morte são variados e regidos por sentimentos, pensamentos, valores culturais, crenças ou imposições legais.

A questão da vida humana
 Se consideramos que espermatozóide e óvulo são vida, como lidar com o fato de milhões deles morrerem o tempo todo neste planeta, inclusive por ação intencional humana? A resposta óbvia é que morte e vida fazem parte de um processo natural inevitável e necessário, portanto aceitável.

Por que então, nos posicionamos contra o aborto intencional, fruto de uma ação proposital humana? A resposta dada é que o aborto representa a morte de um ser humano e nenhum ser humano tem autoridade para tirar uma vida humana.

 Se a questão é essa, então chegamos ao ponto crucial. Quando podemos dizer que um uma vida chamada espermatozóide e uma vida chamada óvulo deixam de ser apenas uma vida e, juntos, passam a ser vida humana?

Há os que defendem que a vida humana começa na fecundação. Há tribos indígenas que acreditam que a vida humana inicia quando a criança começa a usar a linguagem. Há a corrente científica que defende que a vida humana começa com o início da atividade cerebral, por volta do 3º mês de gestação. 
Não há unanimidade quanto a quando exatamente isso se dá.

 Do ponto de vista dos registros bíblicos, sabemos duas coisas interessantes:
1. O feto reage a ações humanas
 1.1.
 "Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o bebê agitou-se em seu ventre, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo". (Lc 1.41)
 "Logo que a sua saudação chegou aos meus ouvidos, o bebê que está em meu ventre agitou-se de alegria". (Lc 1.44)

Não entrarei em análises teológicas do texto relativas a interpretação dada por Izabel. Destaco apenas o óbvio, que sabemos dos movimentos do feto no útero e de como é afetado pelas ações e reações maternas.

2. Deus está interessado em nós desde o ventre materno e não somente depois que dele saímos.
2.1.
 Tu criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe. Eu te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável Tuas obras são maravilhosas! Digo isso com convicção. Meus ossos não estavam escondidos de ti quando em secreto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir.” (Salmos 139.13-16)

Observe, entretanto, que este texto não aborda o tema aborto. Seu objetivo é mostrar, em linguagem poética (e não científica nos termos que definimos a linguagem científica hoje) como não podemos nos esconder de Deus e como Deus tem acesso a nós em todas as circunstâncias da vida.
 Ele valoriza a vida intra-uterina, mas silencia a respeito do momento em que espermatozóide deixa de ser espermatozóide, óvulo deixa de ser óvulo ou quando se estabelece um ser humano com direitos civis, cujo desenvolvimento não pode mais ser interrompido por ação humana.
 2.2.
 "Antes de formá-lo no ventre eu o escolhi antes de você nascer, eu o separei e o designei profeta às nações". (Jeremias 1.15)
 Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça.” (Gálatas 1.15)

Observe que esses dois textos não tratam sobre o assunto aborto. São força de expressão ou textos que falam da crença subjetiva do profeta Jeremias e do Apóstolo Paulo a respeito do tempo em que Deus os vocacionou para desenvolverem a tarefa que realizavam.

Conquanto sirvam de referência, no sentido de valorizarmos o ser humano desde a sua concepção, usá-los como sustentação para posicionamentos em relação ao aborto parece-me exagero.

A questão da sexualidade
 Uma das dificuldades que temos ao lidar com o assunto é que a cabeça religiosa se move em função de sua dificuldade de lidar com o corpo. Nem  catolicismo, nem protestantismo ou outra  denominação religiosa elaborou adequadamente uma teologia do corpo. Simplesmente seguem uma moralidade, um costume, não uma teologia em torno do corpo. Não importa se os métodos concepcionais evoluíram, se o tema está sendo tratado abertamente nas escolas, se os direitos individuais, inclusive das mulheres, são diferentes hoje. Nada disso é relevante.

Assim, na questão do aborto, não são muitos que conseguem pensar o assunto por outra ótica senão a da moral sexual. As razões mais profundas para boa parte do religioso comum posicionar-se contrário ao aborto é pela possível liberalização dos relacionamentos sexuais que isso provocaria. Os problemas sociais decorrentes são tratados como resultados do pecado e, portanto, a solução é todos se converterem.

Acreditam, portanto, que a proibição do aborto é meio de controlar o relacionamento sexual antes e fora do casamento. Todos sabemos que isso é ilusão. Todos sabemos que há diversos outros elementos não religiosos – biológicos, emocionais e culturais, por exemplo - envolvidos na questão dos impulsos sexuais, que devem ser trabalhados se queremos reduzir a incidência de gravidez e aborto no país.


A questão social
 Equivocamos-nos quando pensamos que todas as pessoas são iguais a nós. Nem todos tiveram a família que tivemos, freqüentaram a igreja ou escola que freqüentamos, tiveram acesso ao nosso modelo de habitação, transporte e saúde, por exemplo. Portanto, somos pessoas com sentimentos, pensamentos, valores e crenças diferentes. Assim sendo, não podemos simplesmente querer que todos reajam às realidades com as quais se deparam da mesma maneira como nós reagimos.

Antes de querermos impor nosso modo de ser e crer, precisamos parar para conhecer as pessoas e suas realidades. Se quisermos que todos reajam de maneira semelhante, deveríamos, também, lutar para que todos pudessem ter acesso, também, a boas condições de vida semelhantes. Se isso não existe, devemos, por mais este motivo, aprender a compreender nossas diferenças.

Fico intrigado quando vejo pastores de classe média e média alta, que tiveram acesso a educação, à vida eclesiástica e a habitação adequada que, por falta de contato, não sabem o que é uma família viver num barraco de favela, com padrastos dormindo nos mesmos espaços que afilhadas, sem acesso à educação, alimentação, estrutura sanitária, enfim, e esperam que o comportamento e a cosmovisão de tais pessoas sejam iguais a das criadas nos Jardins em São Paulo, orla de Boa Viagem no Recife ou Itaigara no Salvador, por exemplo. Não é.

A realidade é que pessoas engravidam indesejadamente porque não foram ensinadas a cultivar valores iguais aos nossos, não foram ensinadas sobre sexualidade, vivem expostas a contatos por falta de privacidade, têm uma série de carências que se misturam emocionalmente por falta ou excesso de de recursos, não tem o mesmo temperamento, disciplina, enfim. Quando pessoas nessas condições engravidam, até mesmo pela maneira diferente de entender a vida, não veem o aborto como vemos.

Nesse quadro, é claro que medidas legais precisam ser adotadas para, pelo menos, minimizar os efeitos colaterais maléficos que diferenças acentuadas, e até opostas, de sentimentos, pensamentos e comportamentos causam à convivência social.

Quando se pensa em aborto, num pais com brutais desigualdades sócio-econômicas como as do Brasil, é claro que simplesmente dizer “é proibido” ou “está liberado” não resolve. Dizer que o governo “deveria” fazer isso ou aquilo, também é utópico.

Na verdade, nenhuma pessoa com juízo se coloca levianamente a favor ou contrária ao aborto. Como não vivemos num mundo ideal, o assunto precisa ser estudado em profundidade e decisões precisam ser tomadas.
 Sendo contrários ou favoráveis a liberação, há exceções que precisam ser estudadas.
 O que não pode continuar é pessoas morrerem por falta de dinheiro e acesso a hospitais ou por uma legislação inadequada.

A questão legal
  No Brasil o aborto é considerado crime, exceto em duas situações: de estupro e de risco de vida materno. Estuda-se outras possibilidades, como no caso de anomalias fetais ou ainda que possa ocorrer até a 12ª semanas de gravidez, pois até ai, segundo cientistas, os neurônios ainda não se relacionariam, portanto não haveria "vida cerebral".
 Em Portugal, por exemplo, cuja legislação sofreu modificações, o aborto não era punido nos seguintes casos:

"1. Por motivo terapêutico, ou seja, quando constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e ainda se essa interrupção se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física, psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez.

2. Pelo motivo eugénico, ou seja, se houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, exceptuando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção pode ser praticada a todo o tempo, e finalmente;

3. Pelo motivo criminológico, ou seja, quando a gravidez tenha resultado de violação ou crime contra a auto-determinação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas."

A legislação que definia como crime, punido com prisão de até 3 anos para a mulher e para quem a fizesse abortar, sofreu alterações, sendo agora permitido que se aborte até a 10ª semana, independente de razões.

Consideração final
Mesmo com a legislação restritiva que temos hoje, só na Bahia quase 50.000 meninas engravidam a cada ano e, no Brasil, “segundo dados do Ministério da Saúde, 220 mil mulheres procuram hospitais públicos por ano para tratar de seqüelas de abortos clandestinos. Há estimativas extra-oficiais de que sejam realizados mais de um 1 milhão de abortos por ano.”

Seria cristão, diante deste quadro, simplesmente ser contrário ao aborto ou ao debate honesto sobre o assunto?