quarta-feira, 8 de maio de 2013

Mães que sofrem


“Então Rispa, filha de Aiá, pegou um pano de saco e o estendeu para si sobre uma rocha. Desde o início da colheita até cair chuva do céu sobre os corpos, ela não deixou que as aves de rapina os tocassem de dia, nem os animais selvagens à noite.” (II Samuel 21.10)

Ela não era responsável pelos problemas de Israel, pelo menos não no sentido que entendo. Na verdade, ela acabou sendo uma espécie de Bode Expiatório. Explico:

Israel passava por um período de fome que já se prolongava por 3 anos, durante o reinado de Davi. A explicação para isso, de acordo com a cosmovisãoreinante à época, era que Saul seria o responsável.Isso porque Israel, sob a liderança de Josué, havia feito um acordo com os Gibeonitas (Josué 9) que se dispuseram a servi-lo para terem suas vidas poupadas.O acordo foi firmado a partir de uma mentira, é verdade, mas foi selado.

Ocorre que Saul, em seu reinado, visando preservar os interesses de Israel decidiu exterminá-los. Não pesquisei a causa, mas não podemos descartar a hipótese de que isso se deu porque Saul, diferente de Josué, percebeu que os gibeonitas não eram de confiança.

Erro ou acerto, o fato é que se cria firmemente que a fome era conseqüência da quebra do acordo (feito sob fundamentos de mentiras) e, se Israel não reparasse o erro de Saul, ela não acabaria.

Davi deixou que os Gibeonitas dissessem como o mal feito por Saul poderia ser reparado. Eles, então, pediram a execução de descendentes de Saul. Assim foi feito: Dois filhos de Mispa e 5 de Merabe, portanto, dois filhos e 5 netos de Saul.

A consumação desse desejo não foi uma execução qualquer. Foi um ritual religioso em um monte, “perante o Senhor”, onde os corpos ficaram estendidosOgibeonitas que se deram bem mentindo para Josué, agora saem por cima,sacrificando 7 descendentes de Saul a fim de que os tempos de fome passassem.

O amor de mãe, entretanto, roubou a cena. Sofrendo muito, o que não é difícil de imaginar, Rispaestendeu um saco numa rocha e ficou ao lado dos corpos dos filhos, vigiando para que não fossem comidos por aves de rapina. Ela acabou sendo o“Bode Expiatório”, pois foi sobre seus ombros que recaiu todo o “pecado de Israel”, toda a dor pela perda dos filhos.

Mesmo o sofrimento dos filhos sacrificados, certamente não poderia ser comparado ao sofrimento daquela que os acalentou por longos nove meses, os amamentou, os higienizou, os acariciou, os ensinou a falar e andar e os educou. Sim, seus filhos foram mortos, mas ela ficou com a dor, segundo a crença narrada, pelos pecados deSaul, pelos pecados de Israel. E Davi, nesse caso,uma espécie de protótipo de grande parte dos nossos atuais governantes, faz um gesto simbólicode consolo que não altera a realidade: resgata os ossos de Saul e Jonatas que estavam em mãos inimigas e os traz para Zela, terra de Benjamim. 

Isso continua ocorrendo sob nossos conformados olharesNão mais por uma cosmovisão equivocadade Deus e da natureza, mas por um olhar ingênuo sobre as causas da violência e da impunidade reinantes em nosso país.

Enquanto isso, milhares de mães, além de sofrerem a perda de seus filhos, se consomem lentamente pelo descaso dos que são altamente competentes sob os holofotes televisivos, visando “marketing político”, mas que, de fato, no cotidiano de seus poderes, parece-nos passarem os dias arquitetando o que fazer, não em favor do povo, mas para manterem-se em seus poderosos e bem remunerados cargos nas eleições seguintes.

domingo, 5 de maio de 2013

FAMÍLIA E SOCIEDADE


Desde criança ouço que “a família é a célula mater da sociedade”. E é. Porém, o uso ideologizado que se faz dessa
afirmação não é, necessariamente, positivo. Atrás dela, além de ser possível escondermos o interesse de desviarmos
o foco de diversas naturezas de problemas (por medo ou por ganho), inclusive da própria família, há também uma
boa dose de conveniência política.

Não tenho dúvidas da importância, necessidade até, da família nuclear na construção do caráter de uma pessoa. Na
família nos sentimos em casa. Revelamos mais profundamente os sentimentos que nos movem ou nos incomodam,
que produzem saúde ou enfermidade. Nela, portanto, isso pode ser tratado, seja com palavras conscientemente
explicitadas, seja no silêncio empático, seja, enfim, por mera, mas não sem importância, intuição.

Mas a família nuclear não gira em torno de si mesma. Ela é parte de uma engrenagem chamada sociedade. Ela é
parte, portanto, de um círculo que pode ser vicioso ou virtuoso, dependendo de como é tratada em relação ao
conjunto de instituições que compõe o todo (família, educação, religião, política, economia...). Por isso, ao mesmo
tempo que o que nela é vivido influencia o restante da sociedade, o restante da sociedade a influencia.

Além disso, o eixo comum entre família e sociedade é o indivíduo que é uma caixa de surpresas. Ele age e reage
movido por razões “que a própria razão desconhece”. Ele é o ponto de interligação que pode influenciar e é influenciado
por tudo, por onde passa. Seus sentimentos e pensamentos fazem-no criar situações muita vez imprevisíveis,
favorecendo ou desfavorecendo a manutenção do equilíbrio entre as partes.

Então, se a família tem o poder de influenciar fortemente a sociedade, a sociedade também influencia fortemente
a família. Em termos práticos, podemos afirmar que não se pode atribuir à família as causas do que é bom ou ruim
na sociedade, se a própria família precisa da sociedade para cumprir seu papel.

Uma família inserida num contexto social que não lhe permite acesso a habitação, transporte, segurança, justiça,
alimentação, educação, enfim, de qualidade, poderá gerar pessoas que não contribuirão favoravelmente à saúde da
sociedade. Portanto, é um equívoco lutar pela família, por exemplo, colocando holofotes somente nas questões da
sexualidade, desconsiderando como o poder e o dinheiro estão distribuídos na sociedade. Equívoco, primeiro,
porque a qualidade da família não depende apenas da maneira como lidamos com a sexualidade e, segundo, porque
lutar somente no referido campo, por medo ou conveniência, mascara outras origens de problemas da família na
sociedade.

Pior ainda é quando o discurso de defesa da família é usado como vidro fumê, para esconder fobias de toda natureza
que, em vez de ajudar na construção de uma sociedade mais pacífica, incita ódio em corações manipuláveis.
Se queremos fortalecer a família, devemos tirar os olhos do nosso umbigo para perceber que há outros fatores, além
dos derivados diretamente de nossa sexualidade, influenciando a saúde dela. Eles também devem fazer parte da
nossa luta em defesa de famílias saudáveis.