terça-feira, 24 de maio de 2011

Experiência com Deus


Foi sob as mangueiras do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, no Recife, onde ouvi com maior freqüência um pensamento que pode ser expresso da seguinte maneira: o exercício da leitura é semelhante à degustação de um peixe: separam-se as espinhas, delicia-se com a carne. Tal pensamento nos alerta para pelo menos duas coisas importantes: 1) todo livro contém carne e espinhas; 2) devemos, portanto, ler com senso crítico a fim de que, empolgados com o paladar, não nos engasguemos com as espinhas.

Isso deve nos nortear em todas as leituras que fazemos, inclusive nas leituras da Bíblia.  É que, conquanto creiamos em sua inspiração, isso não significa que ela tenha sido psicografada ou verbalmente inspirada como querem alguns, mas que é produto de seres humanos movidos por experiências profundas com o divino.

Ela é Palavra de Deus, pois de capa a capa enfatiza como Deus agiu na vida de povos e indivíduos, visando manifestar seu amor cujo ápice se deu na humanização em Cristo Jesus. Nossa leitura dela deve visar o entendimento de como povos e indivíduos se relacionaram com Deus e como a ação de Deus em suas vidas mudou o curso de suas histórias. Em outras palavras, sua leitura visa enfatizar como é essencial, para a vida como um todo e para a humanidade em particular, que Deus seja o norteador de nossa caminhada, que vivamos em comunhão com ele.

As espinhas são, principalmente, os elementos culturais que permeiam tais registros, pois, se tais elementos não forem identificados e separados, em vez da leitura nos inspirar a vivermos de maneira profundamente prazerosa com Deus, ela poderá nos conduzir a sermos profundamente nocivos, opressores até, a nós mesmos e aos que nos cercam.

Exemplo disso é a insensatez de se querer transpor para os nossos dias, leis civis e normas de instituições religiosas judaicas, vigentes no início da formação do povo de Israel, descritas no pentateuco (5 primeiros livros do Velho Testamento). Ou, ainda, querer transpor todos os costumes culturais do início da era cristã para 2 milênios depois, na era do avanço científico-tecnológico e da informação.

Não só na leitura da Bíblia, a maior e mais concentrada fonte de registros de experiências humanas com Deus, mas também na leitura que fazemos das Igrejas, o princípio “saborear a carne, separando as espinhas” deve ser observado. É que a vida em Igreja também pode ser uma rica fonte de experiências com Deus.

As igrejas são – pelo menos deveriam ser - uma espécie de laboratório no qual experiências de pessoas com Deus devem – ou deveriam - visar à produção de qualidade de vida saudável – santa na linguagem sacerdotal – para todos. Laboratórios, entretanto, podem produzir drogas-remédio para serem utilizados sob recomendação médica, visando saúde, mas também podem produzir drogas-veneno que nos tornam dependentes de traficantes, nos desumanizam e nos destroem.

Assim, também na vivência em igreja, devemos estar atentos para separar “carne de espinhas”. Ou, numa linguagem joanina: “não creiam em qualquer espírito, mas examinem os espíritos para ver se eles procedem de Deus porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo” (I Jo. 4.1). Cabe a cada um, portanto, desenvolver senso crítico e capacidade espiritual – fruto de experiência genuína com Deus - para discernir o que, na igreja, provém de Deus e o que provém do “tráfico da fé”.

Nossas experiências com Deus, portanto, devem ser “nossas” experiências com Deus e não as manipuladas, injetadas, desejadas ou impostas por terceiros. Devem ser fruto de busca, reconhecimento e desejo sinceros de viver em comunhão com o criador, visando à construção de relacionamentos e estruturas que possibilitem um desenvolvimento saudável da vida para todos. 

Isso é possível porque “Deus tanto amou o mundo que deu o seu filho unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). É possível porque “nisso conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos” (I João 3.16). Então, é para que nossa vida gire em torno do amor que devemos aprofundar nossa experiência com Deus.

1 comentários:

Raquel Xavier 3 de junho de 2011 às 14:54  

Eu sempre leio e gosto dos seus textos. Mas, esse foi bem especial. Claro, gostoso de ler, e muito profundo. Parabéns!!