quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Conselhos ímpios de pios

Pior do que "conselho dos impios" são os conselhos ímpios de pios. É que, diante de alguém tido como ímpio, ficamos com os pés atrás, nosso coração se arma, se protege, se põe na defensiva, se cerca de cuidados, pois culturalmente foi introjetado em nós que palavra vinda de lábios incrédulos não merece aceitação. "Como é feliz aquele que não segue o conselho dos impios..." (Salmos 1:1:)

Quando, porém, estamos diante de pios, baixamos a guarda, o coração se abre, a alma se entrega, o senso crítico é desativado e tudo que deles ouvimos penetra nosso corpo, atinge nossa medula, sem nenhuma resistência.

O paradigma mental que norteia nosso juizo continua sendo o da Idade Média. Naquela fase da história, a força de um argumento não era medida pelo argumento, mas por seu autor. Se a pessoa era acadêmica, social ou religiosamente respeitada, sua palavra ficava acima de qualquer suspeita. Bastava a citação do autor e a discussão cessava.

Há conselhos, entretanto, que mesmo vindo de labios pios merecem um sonoro não. Quem não se lembra da reação de Amós diante do conselho do sacerdote Amazias ? (Amós 7:12). Ou da reação de Jesus diante do conselho de Pedro? (Mc 8:31). Ou da reação de Jó diante do conselho da esposa? (Jó 2:9).

Um conselho não é bom porque brotou de pessoa pia, nem mau por ter sido proferido por pessoa ímpia. Nem mesmo é bom por vir embalado em palavras ou textos bíblicos. Nisso Satanás foi experto; mas Jesus, muito mais. (Mt 4:5-7).

Palavras têm significados próprios e contextuais e quem as profere tem boas ou segundas intenções. Portanto, não julgar conselhos pelo autor, nem palavras pela embalagem, é recomendável.

Ore, reflita, pondere, avalie as consequências e decida por si. Sempre se lembrando do conselho de João: “amados, não creiam em qualquer espírito, mas examinem os espíritos para ver se eles procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo.” (1 João‬ ‭4:1‬)

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Democracia batista


Meu pai – Pr. Jovino de Oliveira - foi aluno do hoje inexistente Instituto Bíblico Batista do Estado de São Paulo, em Bauru, nas décadas de 60 e 70. Lembro-me de que as aulas eram em maio e setembro. Morávamos em Garça, por isso, nesses meses ele passava de segunda a sexta estudando e voltava nos finais de semana.  Quando voltava, ficávamos em torno do fogão à lenha ou em torno da mesa da sala ouvindo-o contar o que havia aprendido.

Nessas conversas recebi as primeiras aulas de democracia batista. Aprendi, primeiro, que quando as posições sobre determinado assunto não convergem, o norte a ser seguido pela igreja deveria resultar de decisão da Assembléia de Membros, pelo voto da maioria.

Aprendi, também, que antes de um assunto ser colocado em votação, abrir-se-ia oportunidade para discuti-lo. (Confesso que não gosto da expressão “discutir o assunto”. Discussão é uma palavra que pressupõe posicionamentos unilaterais firmados e tentativas de convencimento do outro por via de mão única: um fala, o outro também e nenhum dos dois parece ouvir. Prefiro a palavra diálogo: um fala, o outro ouve; um ouve, o outro fala, e assim caminha-se em busca de convergências).

Claro que é legítimo o processo de mútuo convencimento, mas as partes precisam acreditar que a construção do consenso deveria ser o objetivo desejado. Porém,  construir consensos só é possível quando há predisposição, primeiro, para admitir que não se é dono da verdade; depois, que é essencial colocar-se no lugar do outro para entender os motivos de sua visão e, finalmente, que as partes estão, de fato, ponderando a respeito do que ouvem visando construir um acordo que seja bom para todos.

Se, entretanto, em vez de diálogo, o espírito é de imposição, a democracia dá lugar à ditadura de uma maioria, ainda que rigorosamente conquistada pelo voto, dentro das regras democrático-estatutárias. É que, por falta de diálogo, uma parte sente-se vitoriosa por ter obtido apoio da maioria, mas terá que lidar com a crescente pressão da minoria que não se sentiu pelo menos ouvida e compreendida, além de “derrotada” no voto.

Isso gera conflitos, omissão na cooperação, afastamento até de participantes por insatisfação, não pelo resultado em si, mas pelo processo, além de desviar o foco de atenção da igreja de sua missão, perdendo-se energia, tempo e dinheiro e enfraquecendo o desenvolvimento de sua missão.

A partir daquelas conversas com meu pai, aprendi que democracia não seria simplesmente a prevalência da vontade da maioria, mas também uma busca continua por compreensão dos pensamentos, sentimentos e necessidades das minorias, visando garantir a elas a dignidade essencial para continuar caminhando com o grupo.

Aprendi ainda que, quando se é parte da minoria vencida pelo voto, a vitória da maioria deveria ser reconhecida, a postura de respeito à decisão deveria ser cultivada e o espírito de oposição não deveria falar mais alto do que o de lealdade às regras democráticas do jogo.

Aprendi, finalmente, que a postura crítica não deveria ser sufocada, mas pautada na racionalidade que visa abrir caminhos à continuidade de entendimentos e esclarecimentos e à convivência construtiva, e não na passionalidade que agride, obscurece, afasta e nos desvia da finalidade desejada pela igreja.

Sinto falta do obsoleto fogão à lenha e das benditas conversas sobre democracia batista. Quanta falta eles  - o fogão e as conversas - nos fazem nestes tempos de crescimento das polarizações ideológico-teológico-doutrinárias e de desaparecimento de consensos. Tempos nos quais os resultados imediatos dos nossos empreendimentos religiosos são mais importantes do que a vida dos cooperadores envolvidos. Tempos nos quais temos acesso a modernas técnicas de marketing e a meios de comunicação digitais, mas que são usados apenas como via, repito, de mão única através dos quais queremos e podemos nos fazer ouvir, mas estamos perdendo o interesse e a capacidade de parar para ouvir.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Por um Brasil movido pela graça


Muito feliz a idéia da Junta de Missões Nacionais de escolher a frase “movidos pela graça”  como tema de sua campanha 2018.  Ao lê-la, pus-me a pensar no que teria passado pela cabeça dos que participaram do processo decisório. É que a escolha de tema de campanha de qualquer natureza não se dá no vácuo. Há um contexto sócio-cultural e uma realidade que se pretende influenciar, preservar ou alterar. Palavras significam muito mais do que palavras.

Sejam quais tenham sido as constatações responsáveis pela escolha, “movidos pela graça” foi de uma felicidade imensa, pois poucas palavras têm o poder que a graça tem de tornar mais saudável e feliz a vida de indivíduos e grupos.

Provavelmente constatou-se que o que tem movido pessoas nas igrejas e fora dela não seja o que seria mais recomendável, desejável, benéfico, se fosse adotado como paradigma pelo conjunto da população. Provavelmente se percebeu a existência de referenciais de pensamento e de conduta que não deveriam fazer parte da vida daqueles que se declaram seguidores de Jesus, partícipes do Reino de Deus.

Pensei nessa direção por lembrar-me de como, no Sermão da Montanha – a constituição do Reino de Deus -, há uma tônica na fala de Jesus insistindo no arrependimento, isto é, na mudança de mentalidade, na mudança de modelos mentais que determinam a conduta.

Jesus sabia que somos guiados por modelos que são introjetados em nossa mente ao longo da vida, expressos em frases curtas e que moldam nossos relacionamentos. Quem nunca ouviu, por exemplo: “lugar de mulher é na cozinha” ou “homem nenhum presta” ou “todo político é ladrão” ou “pastor só pensa em dinheiro”  ou “homem que é homem não chora” ou “quem pode manda, quem tem juízo obedece” e por aí vai.  São paradigmas que repetimos e, no fundo, determinam nosso modo de ser e tratar o próximo.

Por isso ele dizia: “ouviste o que foi dito”, “eu porém vos digo”. Ele estava provocando um repensar de conceitos culturais norteadores de ações.

Na cultura dominante as pessoas eram movidas pelo legalismo. Pessoas legalistas têm dificuldade para compreender que, conquanto as leis sejam necessárias e devam ser obedecidas, nenhuma delas é capaz de abarcar todas as possibilidades de situações que envolvem a vida humana. Não percebem que as relações interpessoais não são uma equação matemática e, por isso, repito, conquanto as leis sejam importantes, a cosmovisão regida estritamente pela lei, sem considerar seu espírito, acaba matando.

Na cultura dominante as pessoas eram movidas pelo moralismo. Embora a moral, isto é, costumes e tradições que determinam o modo de agir, tenha sua importância, ninguém é obrigado a repetir comportamentos simplesmente porque “sempre foi assim”. Houve tempo em que o paradigma era: “crente não vai ao cinema”. Na IB de Garça, SP, onde fui batizado, há uma ata que deliberava exclusão automática de quem fosse ao cinema. Hoje não. “Mulher crente não usa calça comprida”. Quando a I.B. Emanuel em Boa Viagem, Recife, na década de 60, liberou o uso de calças compridas pras mulheres em função dos maruins, foi chamada de liberal. Hoje não.

Quando Jesus declarou "Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo’. Mas eu lhes digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem” (Mt. 5:43) ele estava dizendo não à cultura do ódio. O paradigma vigente era odiar o inimigo, mas sob a égide do reinado de Deus o paradigma deveria ser: “amem os seus inimigos”. E a justificativa de Jesus era: Deus não manda sol e chuva somente para bons e justos, mas também para maus e injustos. Deus é amoroso e assim como ele é perfeito em amor – “vínculo da perfeição” (Col. 3:14) e “caminho mais excelente” (I Cor. 12:31) – assim devemos nós também ser (Mt 5: 43-48).

Estamos vivendo dias de extremismos. Símbolos de morte ganham espaços, são acolhidos até em igrejas e disputam nossos corações. A cultura do ódio recebe aplausos. A corrupção que ilicitamente enriquece alguns e condena milhares à morte por falta de recursos é a regra. O moralismo irrefletido está na crista da onda. O crescimento da arrogância doutrinária que humilha a divergência e se pudesse mataria o divergente, é sem igual.

Desafiar, portanto, nesses tempos, a nos movermos pela graça é de uma oportunidade extraordinária. Parabéns Junta de Missões Nacionais. Que o povo batista brasileiro entenda o recado e adote o paradigma.
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