sábado, 5 de setembro de 2009

Lembranças da infância em Garça

Música é como perfume: tem o poder de escarafunchar os recônditos da memória, adentrando por entre móveis empilhados e empoeirados nos quartos escuros da vida, cheios de teias de aranha, cheiro de mofo, barulho de ratos, nos quais garimpamos medrosa, meticulosa e cuidadosamente, buscando preciosidades que possam produzir fortes e inacabáveis orgasmos.


Não importa se é considerada brega ou xique; se é bem ou mal interpretada; se a harmonia foi feita com boa qualidade técnica ou não. Quando ela penetra nossos ouvidos, vai logo ressuscitando lembranças; remetendo-nos a tempos distantes e fazendo com que cada partícula do nosso ser seja irrigada por fortes sentimentos.


É o caso da música MEU PRIMEIRO AMOR, de Herminio Gimenez, José Fortuna e Pinheirinho Jr.. Quando começo a ouvi-la sou instantaneamente trasladado para a Rua Carlos Ferrari, em Garça, onde vivi quando tinha em torno de 6 anos.

A rua não era asfaltada. As luzes dos postes eram acesas e apagadas por um profissional que ia, dia após dia, de poste em poste, com uma vara longa, ligando ou desligando uma chave. Nela também passava o “véio tarado”. Diziam que ele morava na Rua Bahia, famosa por ser uma zona de meretrício. Quando ele aparecia, a criançada corria pra dentro de casa.


Nessa rua vivi experiências inesquecíveis. Lembro-me, por exemplo, do dia em que o caminhão que recolhia lixo parou em frente a minha casa. Assim que percebi que ele sairia, dependurei-me na rabeira, mas nem tive tempo de deliciar-me com a aventura. Eis que meu pai aparece, agarra-me fortemente, leva-me para um canto e me dá uma boa surra. Recolhi-me num quarto da casa, morrendo de vergonha das pessoas que nos visitavam, fiz xixi nas calças e nunca mais ousei aquele tipo de peraltice.

As visitas do padre da lambreta, se não me engano por ocasião do nascimento do meu irmão Edson, também me ocorrem quando se abrem os arquivos daquele período. Conquanto fôssemos batistas, bom relacionamento com padres e freiras ficaram em minha mente.


Nada, porém, se compara à lembrança do dia em que dona Nena estendia roupas num varal improvisado na calçada. Ela trabalhava eenquanto eu e mais dois ou três meninos, planejávamos o que fazer com uma colméia instalada numa árvore. Ao acabar de estender as roupas, ela convidou-me a entrar e alertou-me do perigo que corria com as abelhas. Excitado, porém, com mais uma aventura, não me dei conta de que, de repente, um dos meninos atirou uma pedra na casa das abelhas e nem tive tempo de correr. Quando dei por mim, já não sabia mais o que fazer se não gritar desesperadamente, pedindo por socorro.


Claro, uma febre tomou conta de mim e, paparicado pelas irmãs mais velhas, fiquei acamado sem que uma mosca pudesse se aproximar.


A casa era de madeira escura e o telhado não era forrado. Como eu era pequeno, ela me parecia gigante. Quando meu pai chegava do trabalho, corria recebê-lo no portão e o acompanhava até um tanque, no fundo do quintal, onde ele lavava os braços com sabão.


Certa vez perguntei-lhe porque ele passava sabão até os cotovelos. Ele disse que era pra matar os bichinhos que estavam nos braços. Se não se lavasse, eles escorregariam até o garfo da comida, entrariam em seu corpo pela boca causando doenças. Até hoje, cada vez que lavo as mãos, lembro-me da história dos bichinhos escorregando braços abaixo.


Diariamente eu acordava ao som de música sertaneja tocada no rádio da casa vizinha, acompanhada de um cheiro delicioso de café que meu pai preparava antes de sair para o trabalho. Na cama eu permanecia sob os cobertores, observando raios de sol que penetravam por entre frestas da parede ou do telhado que não tinha forro, trazendo luz para dentro do quarto escuro e frio.


Daí minha saudade ao ouvir esta música.



Saudade, palavra triste
Quando se perde um grande amor,
Na estrada longa da vida
Eu vou chorando a minha dor
Igual a uma borboleta
Vagando triste por sobre a flor
Teu nome sempre em meus lábios
Irei chamando por onde for
Você nem sequer se lembra
De ouvir a voz desse sofredor
Que implora por seus carinhos
Só um pouquinho do seu amor
Meu primeiro amor
Tão cedo acabou,
Só a dor deixou
Nesse peito meu
Meu primeiro amor
Foi como uma flor
Que desabrochou e logo morreu
Nesta solidão, sem ter alegria
O que me alivia são meus tristes... ais...
São prantos de dor
Que dos olhos caem
É porque bem sei
Quem eu tanto amei
Não verei...
Jamais...

1 comentários:

Monica Hernandez 12 de setembro de 2009 às 23:02  

Ô, Pai! Por que você nunca me falou dessa história dos bichinhos quando me ensinou a lavar direito as mãos? kkkkk! Que bonitinho!
Outra coisa, "escarafunchar os recônditos"? Isso é que eu chamo de interpretar pelo contexto pq eu nunca vi essas palavras antes! Muito poético você nesse dia!
Adorei ler seu texto. Fiquei imaginando a vó Nena falando pra você tomar cuidado com as abelhas.
Saudades! beijos