domingo, 14 de fevereiro de 2010

O carnaval de Salvador


Não há como não refletir sobre o carnaval. Estou no olho do furacão, a 200 metros de um dos circuitos do maior carnaval de rua do planeta, que é o de Salvador, Bahia. 
 Não fui até o local, mas não posso evitar de saber tudo que está acontecendo na Praça do Campo Grande e Corredor da Vitória, pois daqui ouço tudo o que ali se diz e se canta, pelos potentes equipamentos de som usados nos trios elétricos.
(A Praça do Campo Grande, na qual caminho, em dias normais)
Gláucia está em Manaus assistindo ao pai que está enfermo e, conquanto tenha recebido diversos convites para estar com famílias da Igreja em lugares certamente maravilhosos, a necessidade de colocar em dia algumas leituras e trabalhos acadêmicos não permitiram que eu desfrutasse da companhia de gente que tem me dado carinho e tenho me empenhado para corresponder. Espero, em pelo menos um destes dias de carnaval, poder usufruir da companhia de alguém em uma dessas ofertas.

Por enquanto vou cumprindo meu dever, lendo pela manhã, tarde e noite, com intervalos para cuidar de outras necessidades, incluindo o gato que, quando não está dormindo, me cerca o tempo todo, e o computador que me faz sentir menos isolado.

 As mudanças no cotidiano do bairro

Do alto do 7º andar do meu apartamento, cercado de janelas de vidro por todos os lados, vejo o movimento  de gente que vai e vem.
Na ida ao supermercado que fica a 100 metros da praça, percebi que o perfil do público ali, bem como o produto mais procurado, não é o predominante no cotidiano.

Desde o estacionamento até a parte de dentro da loja, toda uma estrutura de venda de cerveja, no atacado, está montada. Assim, há uma quantidade imensa de moças bonitas atraindo clientes para a marca de cerveja que representa. Todo o acesso imediatamente do lado de dento da loja está abarrotado de pilhas de cerveja e água. A clientela, em sua maioria, são os vendedores de rua reabastecendo seus estoques. No estacionamento, dezenas de pessoas, geralmente grupos de rapazes e moças, ocupam os espaços bebendo, rindo e falando em voz alta para competir com o barulho dos trios.

As pessoas vão e vem. Geralmente em pequenos grupos ou casais de mãos dadas. A música rola o dia todo. Na maior parte, músicas mais agitadas e, vez por outra, músicas mais lentas. Até um "Ave Maria" de Schubert, já rolou, além de discursos de responsáveis pela segurança pública.
(A Praça do Campo Grande, na qual ninguém "caminha" em dias de carnaval)

Motivos para participação e tipos de pessoas

No meio disso tudo, há pessoas olhando o movimento, outras querendo ver de perto alguma celebridade, outras a fim de brincar,  pulando juntamente com a massa ao som das músicas e outras, ainda, com uma infinidade de intenções que vão das comerciais, passando pelas eróticas, chegando a furtos e assim por diante.

É óbvio, portanto, que nem só de gente má intencionada ou interiormente vazia é formada a multidão dos que estão nas ruas. Encaixar todos os que vão às ruas nesse perfil parece-me simplismo. Muitas das pessoas que lá estão, são as mesmas que encontro quase que diariamente pelas ruas do bairro. Pessoas que trabalham, estudam, se alegram e choram como todo ser humano. Algumas já equacionaram o sentido de suas existências, outras ainda não. Umas têm uma compreensão de religiosidade que inclui a diversão e são pessoas vivendo suas vidas segundo os ditames de sua fé e consciência.

Discursar que todos os que ali estão são pessoas desesperadas em busca de alívio e que, depois da folia, cairão numa realidade depressiva, parece não condizer com a realidade toda. Ainda que, como em todo ajuntamento de pessoas, inclusive em reuniões religiosas, haja pessoas buscando uma razão para viver, creio ser necessário distinguir o discurso ideológico religioso que define, a priori, o carnaval como atividade 100% diabólica e as reuniões religiosas como atividade 100% divina. Quem vive e estuda há décadas a realidade das igrejas sabe que também existe muito de diabólico em atividades religiosas.

Referencial para avaliação do evento

Talvez, um referencia que pode nos ajudar em nossa reflexão sobre o carnaval seja uma avaliação do ambiente em termos de riscos. Nesse sentido, o julgamento partiria não de um pressuposto preconceituoso, mas de uma análise de dados mais profunda. Isso significa avaliar o ajuntamento, as finalidades - de lazer, de economia - e a probabilidade de efeitos maléficos.

Ninguém condena ajuntamento de pessoas pelo ajuntamento. Condena-se ajuntamento que, em vez de contribuir para uma vida mais justa, amorosa, feliz ou solidária, leva as pessoas em sentido contrário. É o caso, por exemplo, da condenação ao ajuntamento de pessoas más, declarada por Davi (Sal 6.5) e ao de pessoas religiosas, denunciado por Amós (Am 5.21).

Ninguém condena, também, ajuntamento com a finalidade de diversão. Fui vítima de um período em que evangélico era proibido de ir a estádio de futebol. Hoje, é comum até pastores presentes em ajuntamentos de milhares de pessoas em estádios de futebol.

Quanto ao aspecto econômico, ele é inerente a toda atividade humana. Porque a igreja se reúne, prédios precisam ser construídos, equipados e mantidos, e pessoas constroem, oferecem serviços de manutenção e venda de equipamentos, tirando disso seu sustento. Porque as igrejas cantam, há pessoas que produzem e vendem músicas, partituras, instrumentos musicais, equipamentos de som e vídeo, tirando disso seu sustento. Porque as igrejas ensinam, pessoas produzem livros e revistas, materiais didáticos e promovem cursos de capacitação de professores, tirando disso seu sustento.

Porque pessoas vendem produtos e serviços às igrejas, elas - as igrejas - precisam de recursos financeiros para sua manutenção, cabendo aos fiéis prover tais recursos.

O mesmo raciocínio se aplica ao carnaval e toda atividade humana. Apenas a motivação, finalidade, produtos envolvidos e fontes de financiamento são geralmente diferentes.

O que considerar na hora de decidir

O carnaval coloca pessoas numa encruzilhada na qual precisam decidir entre duas coisas essenciais à vida humana: o princípio do prazer e a aspiração de segurança.

Assim, uma questão que merece reflexão é a probabilidade de efeitos maléficos. A decisão de cada um, nesse caso, depende de fatores objetivos e subjetivos.

Fatores objetivos

Por fatores objetivos considero os dados referentes a elementos disponíveis à observação e crítica comum. Por exemplo: é notório, aos olhos de todos, a quantidade de bebida alcoólica utilizada no ajuntamento de carnaval. Qual seria a consequência disso? Quais os efeitos do álcool no comportamento das pessoas? 

Sabemos que o álcool tem o poder de levar seus usuários a perderem o controle de seus pensamentos e comportamentos e a liberarem seus sentimentos. Assim, em ambiente com elevado índice de pessoas alcoolizadas, aumenta a probabilidade de sentimentos nocivos serem expressos gerando comportamentos que podem expor os presentes a riscos.

Andando  pelo bairro, lembrei-me do meu tempo de Flórida, quando enfrentei quatro furacões. Para minimizar os efeitos dos furacões, tapumes eram colocados em portas e janelas dos prédios comerciais e residenciais. Perguntei-me: o que quer dizer a colocação de tapumes nas portas das lojas e dos condomínios dos bairros onde há um circuito carnavalesco ? De que tipo de furacão se está protegendo?

Outro dado interessante é o elevadíssimo investimento em iluminação das ruas; tecnologia de ponta com câmeras que permitem o acompanhamento, pela segurança, do que está acontecendo nos locais, em tempo real,via internet; uso de helicópteros como reforço policial, além da instalação de postos policiais e de saúde. Qual o significado disso? Que preocupações ocupam a mente dos que exercem o poder público?

Os investimentos em proteção do patrimônio, em segurança e saúde pública indicam os riscos do evento, confirmados pelos dados noticiados pela imprensa, em termos de brigas, roubos e atendimentos nos postos policiais e de saúde. Isso é um fator objetivo que deve ser considerado ao avaliarmos o ajuntamento.

Fatores subjetivos

Quantos aos fatores subjetivos, refiro-me àqueles que não podem ser observados, pois fazem parte do universo interior de cada um. 

Cada pessoa tem uma percepção da realidade e a julga não somente com base em valores e crenças, mas também em termos de sentimentos, de intuição. Assim, a predisposição para arriscar-se não é igual em todas as pessoas. O perfil de cada um varia entre os de pessoas excessivamente inseguras que, portanto, se expõem menos a riscos e, de outras, extremamente seguras que, por isso, muita vez não consegue perceber perigos.

Há também pessoas que não desenvolveram plenamente a capacidade de julgamento próprio e, portanto, no seu agir, dependem da aprovação daqueles que exercem algum tipo de autoridade sobre suas vidas. É o caso de crianças e adolescentes que, inexperientes, não somente dependem emocionalmente de seus pais, mas também estão sob a responsabilidade civil deles. 

Aqui também se inclui religiosos neófitos que, por razões diversas, submetem-se, irrefletida e, às vezes, cegamente, à orientação de instituições e dirigentes religiosos.
Nesse caso, a dependência não se dá só e predominantemente em termos de uma palavra objetiva do líder religioso, dizendo sim ou não a uma consulta sobre ir ou não a ajuntamento carnavalesco, mas também de toda uma construção de crenças desenvolvidas ao longo da caminhada que leva o crente a sentir-se inseguro, sobre se participar de ajuntamento de carnaval seria adequado ou compatível com as crenças abraçadas.

No meio protestante, a Bíblia - tida como única regra de fé e prática -, é usada de acordo com a personalidade de cada pessoa. Umas buscam textos bíblicos que reforcem a represália, outras, a liberação de desejos. Em outras palavras, os textos bíblicos são objetivamente os mesmos, mas o uso deles, a interpretação que se dá, tem a ver com as idiossincrasias de cada um.

Como sou pastor batista, daqueles que acreditam na competência do indivíduo, na liberdade de pensamento e de crença e são vigilantes na preservação de tais princípios históricos, não somente procuro desenvolver um ministério que facilite às pessoas serem capazes de alcançar a autonomia, mas oriento os que buscam minha ajuda a refletirem nisso que escrevi e assim decidir.

Se o sentimento for de insegurança, melhor é refletir um pouco mais, em vez de ferir a consciência, encher-se de sentimento de culpa e, até, adoecer (Rom 14.23; I cor 11.30).

E você, o que pensa disso?


PS.:  
1. Recomendo, também, a leitura do texto "Todas as coisa me são lícitas"

2. Escrevi esta reflexão ao som de Ivete Sangalo, que exatamente agora, 14h30, começa a despedir-se cantando “vai buscar Dalila” e de helicópteros que não param de sobrevoar meu telhado, acredita?

8 comentários:

Eliezer Junior, Salvador, Bahia, Brasil 14 de fevereiro de 2010 às 17:22  

Grande Edvar!

Gosto muito de ler o q escreve, e concordo plenamente com o q está escrito nesse post. Eu sempre que me entendi por gente, viajo no período de carnaval. Porém esse ano, eu tive que ficar por salvador mesmo, e acabei indo ao circuito barra-ondina, para sentir esse lance de carnaval... Confesso que tive medo de sofrer algum acidente, assalto ou algo do tipo, mas a curiosidade foi maior. Carnaval, nunca mais... De certo tem uma parte interessante da festa. Muitas pessoas estão ali, são educadas e se divertem, sem maiores consequências. Porém, perdi a conta de quantas pessoas embreagadas, marginais levados por policiais e ambulâncias passavam por lá. Ainda quero conversar contigo sobre isso, e outras questões que me inquietam.

Grande Abraço,

Eliezer Junior.

Anônimo 16 de fevereiro de 2010 às 21:38  

Eu sou contra. É uma festa, sem generalizar, de extravaso carnal. A propósito, lembro-me de uma mensagem pregada pelo Pr. Billy Graham intitulada "Carnaval do diabo".
JN

Anônimo 17 de fevereiro de 2010 às 01:17  

Caro Edvar,

Admiro a sua coragem e a sua lucidez. Confesso que também me sinto incomodado com as respostas simplistas que são dadas quanto a participação de cristãos no carnaval (aliás, quanto a todos os assuntod da vida!). Entendo pessoalmente que trata-se de uma festa de muita libertinagem e violência e por isso não sinto qualquer vontade de participar e não acho que seja um ambiente saudável para um cristão. Mas como você, também acredito que existam pessoas de bem, bem resolvidas e que vão apenas se divertir. Por isso, não julgo quem pensa diferente de mim. Como sou um iniciante (ou aspirante) no ministério, ainda não tenho tal coragem (isso é uma confissão, rs) e tal sabedoria para falar do assunto com profudidade. Mas, suas palavras traduzem muito do meu pensamento.

Grande abraço,

Danilo Gomes

Roberto Amorim 18 de fevereiro de 2010 às 11:56  

Caro Edvar


Texto muito oportuno, inteligente e de leitura fácil. Imagino as esquisitices que ainda se escreverão sobre este texto. Mas um texto bom é aquele que mexe e que nos impede de ficar imparcial.
Espero que tenha conseguido por tudo em ordem e que o pai de Gláucia esteja melhor. Abraços, Roberto Amorim

Kadija Teles 19 de fevereiro de 2010 às 17:55  

Muito boa essa reflexão! Me sinto como se estivesse tentado defender a mesma idéia, mas nunca encontrei as palavras certas. Concordo e assino embaixo!

Raphael Carvalho Gimenes 20 de fevereiro de 2010 às 07:53  

Alguém nos comentários escreveu "Carnaval do Diabo", hehe. Acho engraçado também que usem o Billy Graham como um exemplo intocável, como se ele fosse segundo apenas a Jesus, e tudo o que ele diz é verdade e certo. Claro que não quero ofender ninguém, mas enfim. Extravaso carnal, ou humano? Sexo, violência, felicidade, tristeza, diversão, medo... é tudo humano. Pra que ser contra? Não participar tudo bem, mas daí ser contra.. acho uma perda de tempo. O carnaval é um evento que reúne todas as qualidades e defeitos humanos em um período curto, intenso, e exagerado. Isso traz coisa boa e ruim, do mesmo jeito que religião, e tudo o mais que fazemos na vida.

Gostei do texto, e concordo com o Danilo Gomes, pois pessoalmente não teria coragem do pular carnaval porque me parece ser muito caótico e violento, prefiro ir a uma praia distante com amigos. Mas sei que muita gente vai e se diverte, eu conheco várias.. os únicos problemas que vejo são a violencia e assaltos.. com o resto, contanto que se respeite a liberdade alheia, não vejo problemas.

cilene duarte 20 de fevereiro de 2010 às 22:36  

Edvar,pastor que me faz refletir,
e buscar resposta dentro de mim as vezes de lembranças antigas.
Fui foliona das ladeiras de olinda brinquei tudo que um carnaval podia me oferecer,me divertia muito com todos os blocos,dos mais inocentes aos mais insinuantes,nunca me considerei uma pessoa possuida por nenhum demônios,nem tive sentimento de culpa por nada.pois para mim era puro divertimento.Amava meus Deus como amo até hj,agradeço ao meu Deus por ter me concedido fazer sempre o que quiz fazer.Ao me reconciliar com a Igreja não foi por ter deixado a Deus,mas pela necessidade que gerou dentro de mim de busca-lo mais e mais.
Posso dizer um refrão de Roberto Carlos O importante é que emoções eu vivi.
E hoje são outras emoções bem mais maduras e peneirada,mas sem culpa
pois sei que meu Deus me amou e me ama pelo que sou no interior.
Sincera nos meus sentimentos.
Cilene Duarte

Messias Brito de Jesus 7 de março de 2010 às 17:41  

Pr. Edvar, eu fico simplesmente admirado com tamanha liberdade de reflexão no trato de uma questão tão alardeada por religiosos, sobretudo, batistas (herdeiros de uma moral extremamente puritana). Ao contrário de alguns que preferem a facilidade da demonização a esforçar-se por entender um fenômeno cultural do seu povo; e de outros que fazem de conta que o que está acontecendo ao seu lado não existe, optando pela omissão, você toma uma postura efetivamente teológica! Lê a realidade corajosamente, posiciona-se, não busca consensos fáceis, mas reflete criticamente a partir da sua condição de teólogo e pastor batista e, portanto, defensor da liberdade de consciência.
Sua reflexão supera as nossas costumeiras falas preconceituosas e desarrazoadas, oferecendo uma palavra teológico-pastoral efetivamente digna do diálogo com a igreja e com a cultura local!
Oxalá aprendamos a desenvolver uma postura cristã e pastoral condizente com a nossa realidade!!!