Espiritualidade (Parte 1)
por Rubem Alves
Li, no Journal for Advanced Practical Research sobre dois fascinantes projetos que estão sendo desenvolvidos por cientistas do M.I.T. Em decorrência dos problemas ambientais provocados pelo uso da energia os cientistas têm estado à procura daquilo a que deram o nome de "tecnologias suaves", por oposição às "tecnologias duras". Tecnologias suaves são aquelas que tem por objetivo produzir energia sem poluir e com um gasto mínimo ou nulo dos combustíveis. Por exemplo: a produção de energia por meio de moinhos de vento ou de energia solar é macia porque nem polui e nem esgota recursos naturais. Já a produção de energia em usinas movidas a carvão é dura: esgota as reservas de carvão e polui.
Preocupados com a crescente demanda de energia, a escassez de recursos e a poluição, os ditos pesquisadores estão trabalhando no sentido de produzir artefatos técnicos que não façam uso nem de energia elétrica comum, nem de pilhas e nem de energia nuclear.
O primeiro projeto contempla a construção de um pequeno objeto produtor de luz, com essas características econômicas. Trata-se de um vaso de metal ou vidro, com boca afunilada como numa garrafa, cheio com querosene, do qual sai um barbante grosso e que produz luz quando uma faísca é produzida na ponta do pavio – nome técnico que se deu ao tal barbante grosso. A faísca, para ser produzida, dispensa o uso de fósforos. Basta que se batam duas peças de metal na proximidade da ponta do pavio. Do choque das duas peças de metal salta uma faísca que incendeia o pavio, produzindo uma chama amarelada suave.
No momento o pesquisador está lutando com um problema para o qual ainda não encontrou solução: um cheiro característico desagradável, resultante da combustão do querosene. Mas, com os recursos da química, ele espera poder produzir chamas com os mais variados perfumes – o que permitirá que o dito artefato venha a ter o efeito espiritual dos incensos. Esse artefato dispensa o uso de pilhas e de energia elétrica tradicional, podendo ser usado em qualquer lugar.
O outro projeto procura produzir um aparelho de som que funcione sem pilhas e sem eletricidade, bastando, para isso, o emprego da energia humana e do efeito armazenador das molas: gira-se uma manivela que aperta uma mola que faz girar o disco que, tocado por uma agulha, produz som através de uma corneta metálica. Com esse artefato é possível ouvir música até no alto do Himalaia.
Nesse momento espero que o leitor já se tenha dado conta de que tudo o que eu disse é pura brincadeira. Cortázar fez coisa semelhante com a história invertida das invenções. Partindo do avião supersônico em que as pessoas nada vêem e ficam tolamente assentadas para chegar mais depressa, Cortázar passa por inumeráveis avanços intermediários, até chegar ao meio mais humano, mais saudável e mais ecológico de locomoção, ainda não descoberto: andar a pé. Claro, isso é pura brincadeira... Brincadeira, porque nenhum cientista iria gastar tempo criando o que já foi criado e abandonado, seja lamparina ou gramofone...
Criar! A criatividade é manifestação de um impulso que mora na alma humana. É isso que nos distingue dos animais. Os animais estão felizes no mundo, do jeito como ele é. Há milhares de anos as abelhas fazem colmeias do mesmo jeito, os pintassilgos cantam o mesmo canto, as aranhas fazem teias idênticas, os caramujos produzem as mesmas conchas espiraladas. Não criam nada de novo. Não precisam. Estão felizes com o que são. O que não acontece conosco. Somos essencialmente insatisfeitos e curiosos.
Albert Camus disse que somos os únicos animais que se recusam a ser o que são. A gente quer mudar tudo. Inventamos jardins, inventamos casas, inventamos culinária, inventamos música, inventamos brinquedos, inventamos ferramentas e máquinas. Michelangelo inventou a Pietà, Rodin inventou o Beijo, Beethoven inventou a 9ª Sinfonia.
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