sábado, 5 de junho de 2010

Espiritualidade (Parte 2)


Por Rubem Alves
Como é que a criatividade acontece? É preciso, em primeiro lugar, que haja algo que nos incomoda. Por que é que a ostra faz pérola? Porque, por acidente, um grão de areia entrou dentro de sua carne mole. O grão de areia incomoda. Aí, para acabar com o sofrimento, ela faz uma bolinha bem lisa em torno do grão de areia áspero. Desta forma ela deixa de sofrer. Aprenda isso: "Ostra feliz não faz pérola". Isso vale para nós. As pessoas felizes nunca criaram nada. Elas não precisam criar. Elas simplesmente gozam a sua felicidade. Bem disse Octávio Paz: "Coisas e palavras sangram pela mesma ferida". Toda criatividade é um sangramento.


Como é que a criatividade se inicia? Já disse: inicia-se com um sofrimento. O sofrimento nos faz pensar. Pensamento não é uma coisa. O pensamento se faz com algo que não existe: idéias. Idéias são entidades espirituais. O espiritual é um espaço dentro do corpo onde coisas que não existem, existem. A Pietà, antes de existir como escultura, existiu como pensamento, espírito, dentro do corpo do Michelangelo. O Beijo, antes de existir como objeto de arte, existiu como espírito, dentro do corpo de Rodin. A 9ª Sinfonia, antes de existir como peça musical que se pode ouvir, existiu como espírito, dentro da cabeça de Beethoven.


O espírito não se conforma em ser sempre espírito. Que mulher ficaria feliz com a idéia de um filho? Ela não quer a idéia de um filho, coisa linda. É linda - mas enquanto espírito, só dá infelicidade. A mulher quer que a idéia de um filho - sentida por ela como desejo e nostalgia - se transforme num filho de verdade. Por isso ela quer ficar grávida. Quando o filho nasce, aí ela experimenta a felicidade. Uma idéia que deseja se transformar em coisa tem o nome de "sonho". O sonho deseja transformar-se em matéria.


A "espiritualidade" do espírito está precisamente nisso: o desejo e o trabalho para fazer com que aquilo que existe apenas dentro da gente (e que, portanto, só pode ser conhecido pela gente), se transforme numa coisa, que pode então ser gozada por muitos. A espiritualidade busca comunhão. Hegel dava a esses objetos, produtos da criatividade, o nome de "objetivações do espírito". O caminho do espírito é esse: da espiritualidade pura e individual, para a coisa, objeto que existe no mundo, para deleite e uso de muitos. Os objetos, assim, são o espírito tornado sensível, audível, visível, usável, gozável. Uma canção só existe quando cantada. Um quadro só existe quando visto. Uma comida só existe quando comida. Um brinquedo só existe quando brincado. Um filho só existe quando parido. O espírito tem nostalgia pela matéria. Ele deseja fazer amor com a matéria. E quando espírito e matéria fazem amor, nasce a beleza.


Deus não se contentou um sonhar o Paraíso. Se o sonho do Paraiso lhe tivesse dado felicidade ele teria continuado apenas sonhando o Paraíso. Deus não se contentou em sonhar o homem. Se o sonho do homem lhe tivesse dado felicidade ele teria continuado sonhando o homem. Mas ele (ou ela) só se deu por completo quando se transformou em homem: "... e o Verbo (sonho) se fez carne (corpo)". O espírito quer descer, mergulhar...


Tão diferente daqueles que pensam que espiritualidade é o espírito se despegando da matéria, o corpo morrendo para ser só espírito, sem carne e sem sentidos, como se o material fosse doença, coisa inferior. Beethoven por acaso acharia que os instrumentos da orquestra são coisa inferior? Mas como? Sem eles a 9ª sinfonia nunca seria ouvida! Nesse caso ele ficaria feliz com a sua surdez, porque então a 9ª sinfonia permaneceria para sempre espírito puro! Michelangelo por acaso pensaria que o mármore é coisa inferior? Mas como? Sem o mármore a Pietà nunca seria vista e amada! E ele ficaria feliz se não tivesse mãos, porque assim a Pietà permaneceria para sempre espírito puro! Deus por acaso acharia que o corpo é coisa inferior? Mas como? Sem o corpo o Verbo nunca viveria como carne e ele, Deus, amaria a morte. Porque com a morte o homem permaneceria para sempre espírito puro...


Espiritual é o jardineiro que planta o jardim, o pintor que pinta o quadro, o cozinheiro que faz a comida, o arquiteto que faz a casa, o casal que gera um filho, o poeta que escreve o poema, o marceneiro que faz a cadeira. A criatividade deseja tornar-se sensível. E quando isso acontece, eis a beleza!

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