Eles - os mentirosos - serão lançados no fogo do inferno!
“Mas, quanto ... a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte.” (Apocalipse 21.8)
Sim, eles serão lançados no fogo do inferno, declara João sem meias palavras. Fogo no qual todos eles, sem exceção, arderão. Por isso, eles não deveriam ser aceitos como membros de nossas igrejas, não ter proteção social e, até, ser banidos da vida em sociedade, através de apedrejamento, diriam os mais radicais.
O problema é que “eles” somos “nós”. Inclusive nós que pregamos ou ensinamos o evangelho e somos atuantes na vida eclesiástico-denominacional.
Alguém dirá com ares intelectuais e voz impostada: sua hermenêutica está equivocada. João não está condenando os que mentem eventualmente com objetivos nobres. Ele se refere aos mentirosos sem Jesus. Ou: o texto trata daqueles que fazem da mentira um estilo de vida. Ou: ele está falando de pessoas que, conscientemente, fazem uso da mentira visando o mal do outro. Cada um, como bons advogados que somos, puxará a brasa pra sua sardinha.
O fato é que ninguém pode dizer com segurança absoluta qual seria a idéia ou o sentimento correto que o escritor quis expressar. O máximo que pode conseguir é que sua hipótese interpretativa faça sentido para alguém em dado momento ou conquiste apoio político para sua crença, seja pelos títulos acadêmicos que possui, pelo prestigio social alcançado, pelo poder político-econômico que representa em sua esfera de atuação ou ainda pelos benefícios que tal interpretação produz em favor dos envolvidos no contexto do qual faz parte.
Eu, porém, vos digo: todos quer dizer todos e mentirosos quer dizer mentirosos. Qualquer abertura interpretativa de exceção geralmente será feita por quem, curiosamente, pretende se auto-enquadrar - ou enquadrar alguém do seu mundo significativo - na exceção e não na regra.
Se levarmos ao pé da letra as palavras de João, não sobrará um membro ou um pastor em nossas igrejas. Todos mentimos, talvez todos os dias, em algum momento, por alguma razão. E radicalizo: não mentimos apenas através de palavras e ações geradas pelo inconsciente; mentimos, também, pelas produzidas pelo consciente. Se alguém dúvida dessa - reconheço – forte e indigesta afirmação que permita ser filmado 100% do seu dia e depois assista ao filme, sem edição, fazendo uma avaliação honesta.
É o riso e o abraço “carinhoso” que damos em alguém por quem nosso sentimento é de forte aversão. É o tom de voz suave e feliz que usamos ao atender aquele telefonema importuno dado por alguém com que não gostaríamos de conversar. É o elogio público que fazemos para conquistar apoio político. É a reação “simpática” diante de situações geradoras de sentimentos negativos, mas que exigem postura “adequada” à função ou cargo que exercemos. É o uso de palavras como “querido”, "santo", "amado" ou “irmão” dirigidas a alguém que não engolimos. É o uso de eufemismos ou de mil justificativas suaves, quando a expressão do sentimento verdadeiro seria geradora de desgaste.
Quantas vezes nos colocamos contra ou em defesa de algo, mas nosso interesse real não é com o “algo” discursado, mas com a afinação do discurso político com o de alguém ou segmento que pode nos beneficiar ou prejudicar? Quantas vezes, como no jogo de sinuca, atingimos uma bola com o objetivo de acertar outra?
Uma das mais famosas jogadas de Ronaldinho Gaúcho, craque do futebol brasileiro, é aquela que ele olha para um lado e toca na bola em direção diferente. Craques na arte de jogar com as palavras e habilidosos na capacidade de driblar idéias divergentes, no parlamento podemos superar o “adversário” e explicitar, com facilidade, mil possibilidades de sentido para a palavra mentir.
Já imagino passando por nossas cabeças, a possibilidade de buscarmos o significado da palavra mentira no grego, no hebraico, no latim; já pensamos nas possibilidades dos sentidos teológico, filosófico, científico, enfim. Tudo pra nos livrarmos de tão desconfortável interpretação do texto que a todos lança no fogo do inferno.
Você me dirá: ninguém é “super sincero”. Ou: Abraão, o pai da fé mentiu e Pedro, além de ter mentido para negar a Jesus, ainda agiu de modo dissimulado e foi alvo da repreensão de Paulo. Ou: se não administrarmos as “informações” e os sentimentos, eles poderão ser armas contra nós mesmos. Ou: pela sobrevivência e também por amor, a forma de dizer ou não dizer verdade e mentira precisa ser administrada.
Justifique-se como quiser, mas a honestidade nos leva a admitir que, antes de entregar a vida a Jesus fomos mentirosos e, depois de tê-la entregue, seja por imposição das circunstâncias, por sentimentos desfavoráveis contra alguém ou por qualquer outro motivo, o fato é que todos continuamos mentindo, de alguma forma, em algum grau, por alguma razão. Mesmo depois de “aceitar a Jesus como Salvador”.
Não digo isso para defender o uso da mentira. Longe de mim tal insanidade. Digo isso pra estimular a humildade e a graciosidade para com o outro em suas fraquezas, especialmente nas diferentes das nossas, pois, se levarmos a Bíblia ao pé da letra, nenhum de nós escapará do fogo do inferno. “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós.” (1 João 1:8)
Se nos consideramos salvos e somos membros de uma igreja local que se considera de Jesus Cristo, isso não se dá porque não mentimos ou não pequemos, mas porque cremos que Jesus morreu por nossos pecados do passado, do presente e do futuro ou, em outras palavras, por nos entregarmos à graça divina. Movidos por ela, nos empenhamos em ser verdadeiros, em ser pessoas melhores. “...Mas , se pecarmos, temos um advogado”! (I Jo. 2.1).
3 comentários:
"Não digo isso para defender o uso da mentira.(...) Digo isso pra estimular a humildade e a graciosidade para com o outro em suas fraquezas, especialmente nas diferentes das nossas(...)"
Taí um trecho que vou buscar manter aceso em minha mente.
Curtir 1.000 vezes. Muito bom. Profundo e prático. Deus te abençoe, Pr. Edvar!
Edvar,
Você é genial!!! Muito boa reflexão!
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