domingo, 4 de março de 2018

O que está dizendo através do que não disse. (A propósito do último texto de Lira Neto na Folha de São Paulo)


Da boca do Dr. Merval Rosa, meu professor de Hermêutica e Psicologia Pastoral no STBNB, ouvi pela primeira vez que devemos aprender a ouvir o que uma pessoa está dizendo através do que ela não disse.

Sabendo que Lira Neto estaria escrevendo hoje seu último texto como colunista da Folha, POR DECISÃO DA PRÓPRIA FOLHA E NÃO DELE, fiquei curioso por saber o que ele "escreveria" através do que "não escreveu", afinal, nem ele, nem a Folha, explicaram as razões.

É que, do jeito que as coisas andam, inclusive numa denominação que já se orgulhou de ser conhecida pela defesa  da liberdade de pensamento e de crença, as palavras de Jesus estão voltando à moda:“a quem tem será dado, e este terá em grande quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado. Por essa razão eu lhes falo por parábolas: “ ‘Porque vendo, eles não veem e, ouvindo, não ouvem nem entendem’." (Mateus‬ ‭13:12-13)

Tenhamos, pois, a capacidade de ler e ouvir através do que não está escrito e dito, se quisermos "ter" conhecimento do que acontece ao nosso redor.

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Insurgência dos vaga-lumes

Em vez de optar pela desesperança, há quem continue a apostar na rebelião do pensamento

Imagine um livro denso sobre a obra e o pensamento de Franz Kafka que, para ser lido, exija o trabalho prévio de desatarraxar com chave de fenda dois pequenos parafusos enferrujados trespassando todas as páginas, desde a capa até a contracapa.

Ou um volume que, a propósito de falar de insurreições e revoltas de rua, tenha a extremidade das folhas chamuscadas, exemplar a exemplar, e por isso recenda levemente a papel queimado.

Ou, ainda, uma brochura sobre o inferno do sistema prisional, com as costuras da lombada à vista, acondicionada dentro de um marmitex de papel alumínio, simulando uma quentinha.

Tais ousadias gráficas, que dessacralizam o formato livro e ao mesmo tempo convertem tais publicações em objetos de arte, constituem apenas um dos muitos aspectos instigantes dos títulos lançados por uma editora alternativa paulistana, de catálogo tão enxuto quanto insubmisso às convenções do mercado.

Para além do artesanato e dos experimentalismos materiais que nos atiçam os sentidos, o portfólio da n-1 edições impressiona pelo espírito transgressivo de sua proposta editorial. Não são livros destinados ao mero deleite, à leitura de puro entretenimento. Foram escritos, de modo deliberado, para ferroar consciências.

"A ideia é oferecer pontos de vista que ponham em xeque a perspectiva da razão ocidental, branca, masculina, heteronormativa, eurocêntrica", explica o filósofo, professor e tradutor Peter Pál Pelbart, que dirige a editora ao lado do sócio, o produtor cultural Ricardo Muniz Fernandes. "Queremos suscitar alteridades e insurreições de pensamento, por meio da propagação de vozes plurais que sejam minoritárias, quase inaudíveis."

Desde o primeiro lançamento, "Máquina Kafka", de Félix Guattari, em 2011, até os títulos mais recentes, como "As Existências Mínimas", de David Lapoujade, a n-1 investe em uma linha transdisciplinar que abarca da antropologia à estética, do teatro à filosofia, da política à literatura. Mas sempre trabalhando nos interstícios do mercado, na tentativa de promover fissuras em relação aos discursos hegemônicos.



O filósofo camaronense Achille Mbembe, com "Crítica da Razão Negra", e a americana Judith Butler, com "Corpos que Contam", figuram entre os próximos lançamentos. Autores brasileiros, como Eduardo Viveiros de Castro ("Metafísicas Canibais"), Suely Rolnik ("A Hora da Micropolítica") e Vladimir Safatle ("Quando as Ruas Queimam: Manifesto pela Emergência"), também estão no catálogo.

"Resolvemos publicar esse tipo de livro diante de nossa insatisfação com a maneira rasa de pensar que tomou conta do mercado editorial", comenta Pelbart. "Queremos ativar sensibilidades, promover a potência do pensamento complexo, buscar afinidades com movimentos já em curso."

Tamanho arrojo gráfico-editorial esbarra nas óbvias limitações mercadológicas relativas a esse tipo de produção. Para tentar prosseguir sustentável, a editora instituiu recentemente uma espécie de financiamento coletivo.

Por meio de pequena quantia mensal, o interessado recebe em casa publicações do catálogo, incluindo os impetuosos folhetos da série intitulada "Pandemia", feitos para serem repassados de mão em mão, produzindo o efeito de contágio.

Questionado sobre se, ante o recrudescimento da onda conservadora, é possível sobreviver à custa de uma tática que ele próprio define como "guerrilha editorial", Pelbart responde parafraseando um trecho de "A Sobrevivência dos Vaga-lumes", do francês Georges Didi-Huberman.

"A dança dos vaga-lumes se efetua justamente no meio das trevas", diz, com voz tranquila e pausada. "Quanto mais pesada é a penumbra, mais somos capazes de captar as insurgências do mínimo clarão, perceber os lampejos fugidios e nômades no meio do escuro."

Bom saber que, em vez de optar pelo lamento quase geral de desesperança ou pela rendição cínica ao pragmatismo, existe gente que continua a apostar na alteridade e na rebelião do pensamento. Mesmo que, no presente instante, a luminescência insubordinável dos vaga-lumes pareça eclipsada pelos clarões artificiais dos refletores midiáticos e pelo lusco-fusco entorpecente das multitelas.

"Devemos nos tornar vaga-lumes e, desse modo, formar novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir", propôs Didi-Huberman. "Dizer 'sim' na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o 'não' da luz que nos ofusca."

Lira Neto
Jornalista, pesquisador e biógrafo, já ganhou quatro prêmios Jabuti por sua obra.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/lira-neto/2018/02/a-insurgencia-dos-vaga-lumes.shtml?loggedpaywall


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