sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O terremoto no Haiti e a fala do seu consul no Brasil

Estava curtindo uma notícia feliz – minha filha acabava de informar por e-mail que sua transferência fora aceita pela Florida Atlantic University – quando o noticiário da televisão passa a mostrar imagens da tragédia ocorrida no Haiti. A vida é assim: enquanto uns riem, outros choram; enquanto uns corpos se abraçam pelo prazer, outros fazem o mesmo pela dor; a tecnologia que traz boas notícias é a mesma que nos mostra cenas de pavor.



É doloroso colocar-se emocionalmente no lugar das pessoas que estão vivas sob escombros enquanto não chega o socorro; no lugar do homem que chora a perda da esposa amada enquanto descansava; da mãe desesperada pela notícia do desaparecimento do filho; da filha brasileira, cuja comunicação com o pai militar, pela internet, cessou abruptamente e só depois tomou consciência de que a interrupção não era apenas o fim de um diálogo, mas o início de uma separação irreversível.


Nada, porém, suscitou sentimento mais desagradável do que ouvir o comentário feito pelo cônsul haitiano no Brasil. Primeiro, pela falta de sensibilidade; depois, pelo preconceito de raça e religião.




Enquanto seu povo chora a dor da destruição e morte, ele enxerga uma oportunidade de tornar-se mais conhecido. Claro, sabemos todos que na vida nada é absolutamente mal, nem absolutamente bom; que toda experiência humana traz consigo efeitos colaterais benéficos ou maléficos. O que doe é a aparente falta de sensibilidade frente à dor alheia – no caso, seu próprio povo – e, pior, o inoportuno senso de oportunismo.


Se não bastasse isso, sua fala revela algo que ceifa, silenciosamente, milhões de vidas: o preconceito. Primeiro, o preconceito de raça contra o já sofrido povo africano. Sua fala traz à baila o antigo discurso teológico do fundamentalista branco referente ao pecado de Caim. Por esta hermenêutica racista, ser negro seria o sinal de Caim descrito no livro de Gênesis (4.15), símbolo de desobediência e maldição.


Depois, revela o preconceito religioso. Para ele, a macumba – forma pejorativa de referir-se às religiões de matriz africana – seria causa da desgraça experimentada. Ao ouvir isso, lembrei-me de um missionário norte-americano, doutor e professor de exegese do Antigo Testamento com quem travei um debate caloroso em sala de aula, que tentava convencer-nos, baseando-se em determinado texto bíblico, de que a causa da pobreza e da seca do nordeste brasileiro seria a idolatria do povo.


Não suporto mais o (ab)uso do sofrimento alheio, a transformação da dor humana em meio de estimulo à "evangelização", em propaganda para levantamento de recursos financeiros para agências sociais e missionárias. Ainda assim, mesmo sendo terrível, é compreensível ouvir isso de empresários sem escrúpulo de “ONGs” ou religiões, afinal, para alguns marqueteiro os fins justificam os meios e tudo é válido desde que aumente a arrecadação financeira. Fere, entretanto, o âmago da alma, presenciar a fala de um cônsul, a respeito do próprio país, quando sabemos que abalos sísmicos são fenômenos naturais.


O Haiti, até hoje conhecido como o país mais pobre das Américas, envolvido em conflitos internos e muita corrupção, ocupa agora a mídia internacional como vítima de um desastre que ceifou dezenas de milhares de vidas. Mais triste do que isso, só mesmo a confirmação, através da fala do seu cônsul no Brasil, de que a pobreza de um povo não se mede somente pela quantidade de bens e serviços produzidos – o PIB -, mas também e sobretudo pela pobreza cultural, pela falta de sensibilidade emocional, espiritual e de visão de seus dirigentes, como demonstrou o consul em sua fala.

7 comentários:

Luís Augusto 16 de janeiro de 2010 às 09:50  

Pastor. Muito feliz seu comentário. Mas pior do que o cônsul, que é católico, foi o comentário preconceituoso de Pat Robertson no seu programa Club 700, dizendo que o Haiti está sofrendo porque fez um pacto com diabo para se libertar dos colonizadores franceses. Felizmente algumas vozes se levantaram. Veja no link http://www.abpnews.com/content/view/4730/9/ e no link http://www.abpnews.com/content/view/4733/9/. Como infelizmente nossas visões haitianas são permeadas pelo imperialismo ou pelo preconceito evangélico no estilo WASP, que nós brasileiros adotamos quase em sua totalidade, sugiro uma visão brasileira no blog http://lacitadelle.wordpress.com/

Everon Puchetti 16 de janeiro de 2010 às 14:44  

Caro Evar, sóbrio o seu comentário. Tenho visto muitos cristãos admirados com a tragédia, e pouquíssimos preocupados em orar por aquele povo. Se vc conhecer alguma agencia cristã (com credibilidade) que já esteja instalada no Haiti e que possa receber donativos (mesmo que em $$), indique por favor. Éveron.

ioash 16 de janeiro de 2010 às 17:19  

Não sei o que pode ser mais triste.

monidibb 16 de janeiro de 2010 às 18:58  

Egoísmo extremo.Falta de fé.Materialismo e oportunismo.Esperteza.Parece que muitos, mas muitos cultuam estes "valores".Alguns se encontram no poder e mostram-se indiferentes as mazelas humanas.

Anônimo 17 de janeiro de 2010 às 19:58  

É, meu camarada!
A situação é mais difícil do que se imagina.
E quanto à tragédia acontecida no Haiti, não a acompanhei. É muito jogo de interesses para o meu fígado aguentar. Já me bastou saber da tragédia.
Muita alegria para você, Edvar!

Bruno Montarroyos 20 de janeiro de 2010 às 21:52  

Sábias palavras, Edvar. Posso dizer que também "não suporto mais" o mercado do sofrimento alheio.

Monica Hernandez 31 de janeiro de 2010 às 16:52  

Nossa eu não sabia que o Consul do Haiti no Brasil tinha falado um absurdo desses. Só pessoas com mente pequena podem ter idéias tão pequenas. Se bem que as vezes a gente se surpreende com a origem de certos comentários...