terça-feira, 9 de agosto de 2011

Lembrando-me de meu pai


Perdi meu pai aos 20 anos. Nunca senti necessidade de ir ao cemitério onde seu corpo foi sepultado. Nunca analisei as razões disso, nem achei que tivesse qualquer relevância, pois as lembranças que tinha dele, bem guardadas em meu coração, foram, até hoje, suficientes para acalentar e nortear minha alma.

Se disser que as recordações são somente boas, estaria mentindo. Mesmo esforçando-me para compreender suas razões e colocando-me em seu lugar em alguns momentos de dura disciplina, a dor de algumas surras foi tão horrível que somente um sádico sentiria prazer.

Fui educado no tempo em que não se questionava a prática ou a legalidade do uso de “palmadas” como instrumento disciplinar. Pelo contrário, era comum o uso enfático de textos bíblicos como estes para fundamentá-las:

 “Não evite disciplinar a criança; se você a castigar com a vara, ela não morrerá. Castigue-a, você mesmo, com a vara, e assim a livrará da sepultura.” (Pv. 23.13-14).
A insensatez está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a livrará dela.” (Pv. 22.15)

Das surras, lembro-me de duas. A mais antiga aconteceu quando eu tinha entre 5 e 7 anos. Um caminhão parou na porta de casa. Quando deu partida, dependurei-me em sua rabeira e usufrui de um prazer diametralmente oposto ao da surra que levaria em seguida. Urinei no calção e, de tão envergonhado das visitas que estavam em casa, escondi-me num quarto, onde me vejo encolhido, chorando, até hoje.

Na segunda, tinha entre 8 e 10 anos. Por alguma razão que talvez Freud explique, não consigo lembrar-me do motivo. Mas lembro-me de ter a cabeça colocada entre suas pernas e, sob o clamor de irmãs mais velhas que suplicavam para que parasse, ter recebido infinitas varadas, com uma vara que, durante certo tempo, ficou pendurada na parede da cozinha como alerta.

Depois dessa surra não me lembro de ter levado outra, a não ser mais brandas, da vida.

Apesar disso, sempre acreditei em seu amor, não só porque ele justificava os atos disciplinares - “O que não faz uso da vara odeia seu filho, mas o que o ama, desde cedo o castiga.” (Pv. 13.24) – mas, sobretudo, porque através de muitas outras ações e palavras ele manifestava carinho e cuidado.

Na quarta série a professora procurou minha mãe pra falar da minha situação. Esperava por outra surra, mas naquele dia ele apenas conversou comigo. Ao final do ano, quando lhe dei a notícia da reprovação, ele ficou de cócoras ao meu lado, falou do que aquilo representava pra minha vida e para a dele e, sem surra, chorei.

Empobrecido e bastante trabalhador, ele nunca deixou faltar-nos teto, alimento, vestuário, remédio ou mesmo brinquedo. Nem sempre podendo comprar brinquedos, não me esqueço do bilboquê, do macaquinho marabalista e dos carrinhos, todos de madeira, bem como das pipas, feitos por ele. Até das birocas feitas nas laranjas, cuidadosamente descascadas para chuparmos ou das feitas no chão para jogarmos bolinhas de gude, me recordo.

(Macaquinho equilibrista)
Mais do que isso, sendo um autodidata que vivia lendo, sempre dizia: “não poderei deixar herança pra vocês, tudo que posso dar-lhes é a educação”. E deu!

Deu não apenas o incentivo para estudarmos, mas, com seu exemplo, ensinou-nos a amar a Deus e ao próximo, a trabalhar e sermos honestos. Dos 8 filhos – 6 mulheres e 2 homens – todos continuam empenhados em viver de maneira digna dos ensinamentos recebidos e, inclusive, a se manterem nos caminhos de Deus, integrados em uma igreja.

3 comentários:

gordofalante 9 de agosto de 2011 às 23:04  

Meu pai tinha uma espécie de chicote, também preso em um prego, na cozinha, mas só o usou uma vez, em mim. Meus irmãos não chegaram a conhecer a correia. Da minha vida com meu pai, o que lamento foi que em determinado momento paramos de conversar. Eu e ele éramos fechados... Sonho muito com ele. Se fosse espírita, acharia que ele conversa comigo na madrugada. Gostei muitíssimo do seu texto. Um abraço.

Anônimo 20 de agosto de 2011 às 23:28  

Pastor,
Uma história de vida muito bonita.
Abraços
Ivone Prates

João Paulo Loyola de Oliveira 5 de setembro de 2011 às 19:54  

É a infinita e ao mesmo tempo tênue barreira entre a permissividade e a ditadura patriarcal creio ser uma dúvida para os pais de todos os tempos. Desafios da educação dos filhos.