quinta-feira, 4 de junho de 2009

Deixando de ser peteca

“Não deixe a peteca cair” é uma expressão que ganhou um significado especial no meio batista, desde que o Pr. Oliveira de Araujo, então presidente da Convenção Batista Brasileira, compartilhou, na Assembléia de São Luis do Maranhão, o que sua filha teria feito durante o período em que se encontrava enfermo, à espera de um transplante de pulmão.

Se estou bem lembrado, ela teria enviado a ele uma peteca com a expressão: “não deixe a peteca cair”, que seria o mesmo, que “segure as pontas”, “aguenta firme”, “não desista”, e por aí vai.

Acho a linguagem algo extraordinário. Se nós todos nos aprofundássemos um pouco em lingüística, alguns dos nossos problemas de interpretação de textos sagrados e seus efeitos nos relacionamentos e em nosso modo de viver poderiam ser sanados.


Mas não é sobre isso que quero escrever. A história da peteca é apenas um preâmbulo para pensar no ludismo como cosmovisão da vida.


Por ludismo como cosmovisão da vida, refiro-me ao uso de atividades de lazer como meio para explicar ou entender a vida. Quando dizemos, por exemplo, que a vida é uma gangorra ou uma roda-gigante, queremos dizer que faz parte do viver, estarmos uma hora embaixo, outra, encima. Que não estamos sempre no auge, nem sempre no chão, muito menos em estado intermediário.



Isso é verdade. Em nossa caminhada humana, não creio haver uma pessoa que possa dizer que sempre esteve encima. Seja por razões de saúde física, emocional, relacional, econômico-financeira, enfim, todos, em algum grau, por algum período de tempo, já experimentamos o apogeu ou o perigeu.


Se prestássemos um pouco mais de atenção à cosmovisão lúdicista da vida, seríamos mais humildes. Em nosso meio batista, por exemplo, já vi um bocado de gente, pastor especialmente, que ao passar por mim era como se fôssemos de castas diferentes. Eu, um simples dalit (indigno e sujo), ele um brâmane (casta religiosa mais alta, de posição social privilegiada).


Mas a vida, como um parque de diversões, nos surpreende, brinca conosco, faz nos rir quando acertamos no tiro ao alvo ou chorar quando nos é negado mais um momento no carrossel ou recebemos um não diante de um cor-de-rosa algodão doce.


Assim, reencontro agora alguns outrora “brâmanes”, que não passam de simples “manés”, sem prestígio ou babação, marginalizados nos corredores das assembléias convencionais da vida, até dependendo de ajuda alheia para pisar nos mesmos corredores pelos quais outrora desfilavam de maneira altiva, arrogante.


E a peteca, o que tem a ver com isso? Na casa dos nossos irmãos na fé, Hanilda e Alonso, lá em Itapoã, há uma quadra de peteca. É semelhante a uma quadra de vôlei com piso gramado, capacidade para três a quatro jogadores de cada lado. Em vez de bola, a peteca é o instrumento da brincadeira. Perde ponto a equipe que deixa a peteca cair. O esforço, portanto, é grande, de ambos os lados, pra não deixá-la cair e assim, vencer a brincadeira.



A vida torna-se cruel quando estabelecemos que nós somos a peteca. Se cair significa derrota, ao nos jogarem pra cima, com seus toques, os jogadores são vistos como “gente boa” que nos sustentam no ar, evitando nossa queda e o conseqüente desprazer de nos sentirmos no chão da existência.


Por outro lado, como uma peteca, para não experimentarmos o cheiro da terra é essencial que aceitemos levar tapas continuamente, como objetos do prazer sádico daqueles cuja diversão é nos manter no ar até se cansarem; daqueles que, parafraseando Freud, querem ter um rei, simplesmente para exercitarem o poder e o prazer de depô-lo. Quanto mais tempo conseguem evitar nossa queda, mais riem, divertem-se e nos batem. Mas também há os que gozam, “orgasmicamente”, se uma queda acontece.


Parece restar aos “petecas” da vida escolher entre permanecer no auge, levando tapas ou repousar no chão do esquecimento.


Se não me engano foi o psiquiatra Roberto Shinyashiki que teria dito, em “Carícia Essencial”, que a indiferença é pior do que o desafeto. Assim, preferimos passar a vida levando tapas, mas nos sentirmos vivos, no auge, a adormecermos no chão da indiferença.


Ainda bem que a vida não precisa ser vista pela ótica da cosmovisão maniqueísta, na qual se é ou tudo ou nada, ou terra ou mar, ou oito ou oitenta, ou preto ou branco. Tanto nem só de petecas é feito o mundo do lazer, quanto nem só de petecas é composto o universo do ser. Não somos todos - nem ninguém precisa ser - petecas, nem a vida, parque de diversões.


Refletindo, des-cobrimos que ser peteca não é o único meio de nos relacionarmos com os que nos cercam ou de experimentarmos harmonia interior e exterior ou, ainda, de nos sentirmos felizes, realizados. Há outras formas de nos relacionarmos com pessoas, sermos felizes, sem sermos petecas em suas mãos.


Optei por deixar de ser peteca, ainda que continue levando tapas daqueles que não aceitam minha liberdade dessa condição de vida. As tapas da liberdade conquistada, entretanto, são incomparavelmente mais agradáveis do que as da dependência, da escravidão, da conivência e da subserviência.

3 comentários:

Jorge Alonso 5 de junho de 2009 às 09:32  

Amigo Pr.Edvar

Registros históricos indicam que a peteca era utilizada pelos nativos brasileiros como forma de recreação muito antes dos colonizadores portugueses chegarem.

Através de gerações a tradição de jogar peteca foi se perpetuando, tornando-se enfim o esporte que é hoje.

Para quem já não tem um preparo físico muito apurado, da forma que praticamos, este esporte facilita bastante.

Quanto a sua reflexão utilizando “Não deixe a Peteca cair”, realmente foi excelente “saque” e conseguiu arremessar idéias e pensamentos muito longe. Como já conhecia sua performance nas Quadras da Vida, só tenho que lhe parabenizar pelo texto.


Jorge Alonso

Anônimo 5 de junho de 2009 às 14:34  

Prezado Edvar,

Quero lhe dizer que este texto é de extrema pertinência.
Você conseguiu algo que dificilmente encontramos nos blogs.
Já indiquei para pessoas.
Parabéns pela inspiração.

Glaucia 3 de setembro de 2014 às 11:45  

Excelente!