sexta-feira, 31 de julho de 2009

Solidariedade (2004)

Viajava certa vez do Recife para Fortaleza quando, por volta das 7 pm, o carro apresentou problemas. Faltavam 40 quilómetros para chegarmos à capital cearense e já estava escurecendo. Depois de alguns minutos na pista, pára um caminhão e o motorista nos oferece ajuda. Rebocou nosso carro até um eletrecista que fez os reparos necessários para continuarmos a viagem. Ao perguntar ao caminhoneiro quanto lhe devíamos ele respondeu: “não é nada. Basta fazer como eu fiz, quando vir alguém na mesma situação”.

Assim que chegamos à Flórida, nossa filha voltava pra casa pela Powerline e teve a infelicidade de bater numa pedra, baixando dois pneus do carro. Encostou o veículo num mall, pediu a um senhor que lhe emprestasse o celular e, ao falar comigo, começou a chorar. O dono do celular que inicialmente conversou com ela em inglês, era brasileiro. Ouvindo-a falar comigo em português, não só procurou acalmá-la, mas também consertou as rodas do carro. Quando ela falou em pagamento ele rejeitou e justificou: “já fui ajudado por muita gente nesta vida”.

Quando pastoreava em Boa Viagem, Recife, fui procurado por uma jovem que sofria de hidrose. Suas mãos eram desconfortavelmente úmidas e frias. Ela descobriu um médico em Belo Horizonte que poderia curá-la, mas não dispunha de todo dinheiro necessário para viagem e despesas médico-hospitalares. A igreja levantou uma oferta, completando o que faltava. A cirurgia foi feita com sucesso e o problema resolvido. Meses depois ela se casou. Em seu último domingo em nossoa igreja, antes de mudar-se, deixou uma oferta destinada à solidariedade, em valor igual ao que havia recebido, quando de sua cirurgia. Ela recebeu ajuda e, quando pôde, fez a mesma coisa.

Acho interessante a profissionalização do bem ao próximo. De maneira inteligente e organizada, existem muitas instituições ajudando pessoas necessitadas. Elas devem ser bem-vindas num mundo em que o verbo acumular fala mais alto do que o dividir. Merece reflexão, entretanto, a motivação. Há igrejas que usam a solidariedade como isca para atrair pessoas. Há empresas que fazem o bem somente como estratégia de marketing. Há empresários que investem em causas sociais apenas para descomprimir a pressão de um sistema cuja lógica conduz, inevitavelmente, à disparidades sociais.

Na solidariedade, porém, o foco da ação não gira em torno dos benefícios para quem dá, mas para quem recebe.

Reconheço o papel de qualquer iniciativa profissional, eticamente fundamentada, que visa ajudar ao próximo, mas valorizo muito iniciativas domésticas, de pessoas que simplesmente contribuem com um quilo disso ou daquilo para se formar cestas básicas em prol de empobrecidos. Parecem mais humanizantes pelo calor humano que transmitem.

Nem sempre podemos dizer sim aos pedidos de ajuda. Por muitos anos diretor do Colégio Americano Batista, no Recife, pude acompanhar o drama vivido por famílias que queriam oferecer ensino de qualidade aos filhos, mas as condições econômicas não permitiam. As solicitações de bolsa ou perdão de dívidas eram infinitas numa escola com milhares de alunos. Quando podia dizer sim, dizia sim; quando não, não. Para aqueles fui anjo, para estes, também, mas mal.

No desejo de ser solidários corremos riscos de ser enganados por aproveitadores. Por isso, ao nos propormos a ajudar pessoas, devemos usar cérebro e coração. Conversava com um diretor da cúpula nacional de um grande banco privado brasileiro que disse ter chegado onde chegou, porque adotou a seguinte filosofia: “sempre que uma pessoa estava do outro lado da mesa pedindo dinheiro emprestado, para mim ela queria me roubar até que provasse o contrário”. Não precisamos chegar a tanto, mas perspicácia e “canja de galinha” não fazem mal a ninguém.

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