Perdoar: desafio, necessidade e possibilidade (2007)
Seu José era um homem já idoso. A maneira de vestir-se, de caminhar e os traços de seu rosto indicavam uma pessoa sofrida e triste que carregava um pesado fardo. Nos conhecemos casualmente pelas ruas de uma cidade do interior paulista e começamos a conversar sobre a possibilidade de mudança em sua vida. Depois de algum tempo de diálogo, ele declarou não acreditar que houvesse solução para o seu caso.
Perguntei-lhe sobre o porquê de sentir-se daquela forma e ele contou-me sua história. Garantiu que, em legítima defesa, matou uma pessoa. Foi preso, julgado, condenado e cumpriu a pena. Entretanto, apesar de estar em dia com a justiça, nunca mais conseguiu ser feliz por não se sentir perdoado pelo crime cometido.
Lembro-me de que, enquanto citava as palavras: “se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar nossos pecados e nos purificar de toda a injustiça” (I Jo 1.9), as lágrimas começaram a banhar seu rosto, como se estivesse - e estava - experimentando um momento de libertação. Livre das grades e sem dívidas para com a sociedade, continuava, entretanto, prisioneiro emocionalmente de seus próprios sentimentos, até o momento em que se sentiu perdoado.
Seu Pedro era um pescador bem temperamental. Começou a conviver com alguém que o fazia refletir profundamente sobre suas atitudes. Certa vez foi desafiado a perdoar “setenta vezes sete” uma mesma pessoa que tivesse pecado contra ele. Diante disso e ciente de sua incapacidade para atingir tão elevado nível de espiritualidade, juntamente com seus companheiros acabou pedindo ajuda: “aumenta a nossa fé!” (Lc 17.5).
Tanto perdoar quanto se perdoar é, para muitos, um grande desafio e, para todos, uma grande necessidade. É um desafio porque, geralmente, a pessoa ofendida sente-se ferida, sangrando, sofrendo e amargurada. É uma necessidade porque, além de alimentar sentimentos prejudiciais, é, também, um forte combustível da vingança que causa profundos danos aos relacionamentos e à vida em sociedade.
Por isso, perdoar não é assunto somente de natureza espiritual ou uma virtude a ser perseguida por razões teológicas. É também uma questão de saúde pessoal e social.
Os ensinos de Jesus são ricos em lições sobre o perdão. Em um deles ele fala de um homem que teve suas dívidas perdoadas mas não foi capaz de agir da mesma maneira com seus credores[1]. Num outro, conhecido como oração do Pai Nosso[2], ele não apenas ensina que devemos pedir que Deus perdoe “as nossas dívidas assim como perdoamos aos nossos devedores”, mas também explica que “se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes perdoará. Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes perdoará” .[3]
Dois aspectos despertam a atenção nesses ensinos. O primeiro é que o perdão é o único aspecto da oração que merece um esclarecimento à parte, por Jesus. Isso indica não somente a preocupação de Jesus com o tema, mas também revela uma possível carência dos ouvintes, no caso, daqueles para os quais proferiu diretamente as palavras, e também da comunidade para a qual o evangelho de Mateus foi primeiramente dirigido. Isso reforça a importância do tema.
O segundo é que, nos dois casos, o recebimento do perdão de Deus estaria condicionado à disposição humana de perdoar seus semelhantes. Tal condição não pode ser vista como uma regra matemática, pois, se assim fosse, a soberania estaria sendo tirada das mãos de Deus e transferida para mãos humanas. Em outras palavras, Deus não teria autonomia para perdoar, mas ficaria na dependência da capacidade humana de fazê-lo.
Além das questões de natureza hermenêutica, filosófica e teológica que envolvem o texto que condiciona o Perdão divino à disposição humana para perdoar, todos sabemos que há situações em que somos tão profundamente feridos que se torna quase impossível oferecermos o perdão. Portanto, tais palavras não podem ser entendidas fora da compreensão teológica mais ampla que hoje temos da graça e soberania divinas.
Penso que tais palavras servem de despertamento para a necessidade de cultivarmos misericórdia para com os que nos ferem, assim como Deus é misericordioso para conosco diante dos nossos desvios, bem como para que cultivemos a graça divina e aprendamos a depender dela, também nesta área de nossa vida, uma vez que, se o recebimento do perdão divino dependesse da nossa capacidade de perdoar, estaríamos condenados.
O cultivo de espírito perdoador deve fazer parte de nossas prioridades. A questão é como compatibilizar tal espírito com a realidade de uma sociedade na qual os direitos são desrespeitados como regra e não exceção em nossos relacionamentos. Como compatibilizar o “andar uma segunda milha” ou “ dar a nossa capa”[4] quando, em vez de exceção, tais atitudes contaminaram todo o tecido social e o perdão aos que agem assim contraria o próprio princípio de preservação da vida?
Perguntei-lhe sobre o porquê de sentir-se daquela forma e ele contou-me sua história. Garantiu que, em legítima defesa, matou uma pessoa. Foi preso, julgado, condenado e cumpriu a pena. Entretanto, apesar de estar em dia com a justiça, nunca mais conseguiu ser feliz por não se sentir perdoado pelo crime cometido.
Lembro-me de que, enquanto citava as palavras: “se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar nossos pecados e nos purificar de toda a injustiça” (I Jo 1.9), as lágrimas começaram a banhar seu rosto, como se estivesse - e estava - experimentando um momento de libertação. Livre das grades e sem dívidas para com a sociedade, continuava, entretanto, prisioneiro emocionalmente de seus próprios sentimentos, até o momento em que se sentiu perdoado.
Seu Pedro era um pescador bem temperamental. Começou a conviver com alguém que o fazia refletir profundamente sobre suas atitudes. Certa vez foi desafiado a perdoar “setenta vezes sete” uma mesma pessoa que tivesse pecado contra ele. Diante disso e ciente de sua incapacidade para atingir tão elevado nível de espiritualidade, juntamente com seus companheiros acabou pedindo ajuda: “aumenta a nossa fé!” (Lc 17.5).
Tanto perdoar quanto se perdoar é, para muitos, um grande desafio e, para todos, uma grande necessidade. É um desafio porque, geralmente, a pessoa ofendida sente-se ferida, sangrando, sofrendo e amargurada. É uma necessidade porque, além de alimentar sentimentos prejudiciais, é, também, um forte combustível da vingança que causa profundos danos aos relacionamentos e à vida em sociedade.
Por isso, perdoar não é assunto somente de natureza espiritual ou uma virtude a ser perseguida por razões teológicas. É também uma questão de saúde pessoal e social.
Os ensinos de Jesus são ricos em lições sobre o perdão. Em um deles ele fala de um homem que teve suas dívidas perdoadas mas não foi capaz de agir da mesma maneira com seus credores[1]. Num outro, conhecido como oração do Pai Nosso[2], ele não apenas ensina que devemos pedir que Deus perdoe “as nossas dívidas assim como perdoamos aos nossos devedores”, mas também explica que “se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes perdoará. Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes perdoará” .[3]
Dois aspectos despertam a atenção nesses ensinos. O primeiro é que o perdão é o único aspecto da oração que merece um esclarecimento à parte, por Jesus. Isso indica não somente a preocupação de Jesus com o tema, mas também revela uma possível carência dos ouvintes, no caso, daqueles para os quais proferiu diretamente as palavras, e também da comunidade para a qual o evangelho de Mateus foi primeiramente dirigido. Isso reforça a importância do tema.
O segundo é que, nos dois casos, o recebimento do perdão de Deus estaria condicionado à disposição humana de perdoar seus semelhantes. Tal condição não pode ser vista como uma regra matemática, pois, se assim fosse, a soberania estaria sendo tirada das mãos de Deus e transferida para mãos humanas. Em outras palavras, Deus não teria autonomia para perdoar, mas ficaria na dependência da capacidade humana de fazê-lo.
Além das questões de natureza hermenêutica, filosófica e teológica que envolvem o texto que condiciona o Perdão divino à disposição humana para perdoar, todos sabemos que há situações em que somos tão profundamente feridos que se torna quase impossível oferecermos o perdão. Portanto, tais palavras não podem ser entendidas fora da compreensão teológica mais ampla que hoje temos da graça e soberania divinas.
Penso que tais palavras servem de despertamento para a necessidade de cultivarmos misericórdia para com os que nos ferem, assim como Deus é misericordioso para conosco diante dos nossos desvios, bem como para que cultivemos a graça divina e aprendamos a depender dela, também nesta área de nossa vida, uma vez que, se o recebimento do perdão divino dependesse da nossa capacidade de perdoar, estaríamos condenados.
O cultivo de espírito perdoador deve fazer parte de nossas prioridades. A questão é como compatibilizar tal espírito com a realidade de uma sociedade na qual os direitos são desrespeitados como regra e não exceção em nossos relacionamentos. Como compatibilizar o “andar uma segunda milha” ou “ dar a nossa capa”[4] quando, em vez de exceção, tais atitudes contaminaram todo o tecido social e o perdão aos que agem assim contraria o próprio princípio de preservação da vida?
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